segunda-feira, 19 de setembro de 2022

OS DIAS ANTES DO FIM

Publicamos hoje a escrita melancólica e potente da uma escritora mineira, que nos honrou muito com a possibilidade de compartilhamento de sua literatura belíssima!

Esperamos que todas e todos gostem!

OS DIAS ANTES DO FIM

    As semanas que antecederam a chegada do General Osório ao poder ficariam para sempre associadas ao calor infernal que resolveu dar o ar da graça por aqueles dias. Encontrávamo-nos religiosamente no Bar do Careca todas as tardes, às seis; movia-nos algo como uma urgência de embriaguez e a necessidade premente de se discutir questões elevadas e essenciais ao futuro da espécie humana – a principal e mais recorrente delas era a questão de como atravessar os dias e, principalmente, as noites.
    Mas antes, deixem-me falar sobre o calor. Era um calor opressivo e viscoso, que nos atacava sob todos os flancos, tornando penosas quaisquer tarefas cotidianas; um calor feito de pó, que nos preenchia cada fresta do corpo e da alma. Um calor onisciente, que pairava inerte sobre nossas cabeças, nos enchendo de suor e de desânimo; um calor que era como um agente designado pelo General para nos manter prostrados e abatidos. Era um calor tão brutal que acabamos por nos acostumar e até a nos afeiçoar a ele, como se tratasse de um mal necessário.         
    Naquela tarde Nestor estava particularmente comovido, olhando pensativo para seu copo de uísque – ele sempre afirmava categoricamente que nunca ficava embriagado, e sim comovido – e agitava os braços continuamente, tentando espantar uma mosca, deixando à mostra uma enorme mancha de suor em sua camisa de cambraia. Movia-o o solene propósito de definir o que era a História: de que matéria é feita? Como se deve interpretá-la e, sobretudo, o que fazer para mudar seu curso?
    À primeira pergunta, Nestor respondeu que a História era feita de homens – não só de homens, mas também de mulheres, crianças, e eventualmente de alguns animais domésticos (a esta altura, lembrou-se do grande massacre dos gatos da Rue Saint-Séverin).   
    Não se deteve sobre as duas últimas questões – tamanha era sua comoção – e partiu diretamente para uma definição peremptória e algo filosófica, que proferiu com o dedo em riste e um olhar sonhador:
    – A História é o que os homens fazem daquilo que a História fez deles.
    – Uma história das resistências, então? – completou Firmino, sentado à sua direita.
    – Antes, uma história das armadilhas. 
  Eu participava de nossas reuniões mais como um observador; quase não falava e me dedicava escrupulosamente a anotar o que meus companheiros diziam em um caderninho de capa azul, que eu carregava comigo pra cima e pra baixo – sem que eu tivesse expressa consciência disso, tornei-me uma espécie de relator do grupo. Parecia-me que algumas das coisas que eram ditas ali poderiam revelar-se de alguma utilidade – mesmo que fosse para meter-nos todos no xadrez em um futuro próximo.
    Armando, por sua vez, estava taciturno – ficava girando as pedras de gelo de seu uísque com o dedo indicador e mal tocou nos pastéis de palmito preparados pela mulher do Careca, e que forneciam praticamente todos os nutrientes com que contávamos durante aquele período. Perguntei o que ele tinha; Armando me olhou com gratidão e respondeu com os lábios frouxos, sobre os quais escorriam as gotas de um suor ácido que lhe jorrava do alto da testa:
    – É vergonha, disse. Vergonha dessa mesa ao redor da qual nos sentamos todos os dias; vergonha desse copo de uísque e desses pastéis, vergonha de vocês e de mim próprio.
    – O que me parece – disse Nestor, com grande calma – é que você sente vergonha por levar uma vida normal. 
    – E você não?
    Nestor deu de ombros, e depois falou: – O que se há de fazer?
    – O que se pode fazer, além de se pensar nele e de se falar nele? – disse Firmino, pensativo.
    – Não sei, respondeu Armando. E, depois de uma longa pausa: – Pensar nele e falar nele me parece tão pouco, e ao mesmo tempo um tão grande sacrifício. 
    Descobrimos naquele dia que o General dominava nossas existências, e que a única forma de escaparmos à sujeição total era pronunciando o seu nome. Fizemos um brinde:
    – Ao excelentíssimo General Osório, cruza do tinhoso com uma cadela sarnenta e mais proeminente canalha jamais parido em toda a vasta extensão do território nacional.
    – Que morra engasgado em seu próprio mijo.
    – E que nos faça o grande favor de levar consigo, para o quinto dos infernos, toda a sua distinta descendência.
    As pedras de gelo tilintaram ao encontro de nossos copos e abafaram por um instante o ronco débil do ventilador, que era bastante velho e produzia vento apenas na medida de impedir que sufocássemos. Saímos à rua para fumar um cigarro e deparamo-nos com a noite embaçada e supérflua, na qual as torres metálicas destacavam-se como cactos sobre um fundo desértico. Uma mulher passou por nós; ia com quatro cachorros presos a suas respectivas coleiras e perguntamo-nos se ela também pensava no General Osório e se ela também se recriminava por levar uma existência normal, enquanto isso ainda era possível.
    – Só nos resta esperar por ele – disse Firmino.
    – Encontramo-nos amanhã? – perguntei, e pretendi que meus companheiros não notassem certo tom de súplica em minha voz.
    – O que se há de fazer? – respondeu Nestor.
    – Então até amanhã.
  – Até amanhã – dissemo-nos, e cada um seguiu seu caminho. Sentíamo-nos suficientemente comovidos para pensar em dormir mais uma noite.


Autora: Marcela Fassy
Diamantina, MG

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