sexta-feira, 23 de setembro de 2022

UMA VISITA NO APOCALIPSE

Publicamos hoje uma narrativa incomum, apresentada por um escritor paulista, em uma mistura de angústia e poesia... Um texto que poderia ser desesperador, mas é calmo e doce...

Esperamos que todas e todos gostem!

UMA VISITA NO APOCALIPSE


    Quando abri a porta, Curacciao estava ali, com uma mochila nas costas e uma mala enorme nas mãos. Estava todo suado, cansado e com uma expressão preocupada no rosto por baixo do traje. Eu sabia que ele estava chegando, mas não pude deixar de me emocionar com aquele gesto. Antes de vir, abriu mão de compromissos, trouxe seus equipamentos de trabalho, e aceitou passar os últimos dias por aqui, sabendo que eu estava enfrentando um momento difícil. Que tipo de pessoa larga tudo e se muda de súbito para sua casa para cuidar de você? Curacciao é esse tipo de pessoa. Queria ter visto esse valor nele antes do planeta começar a desmoronar.
    — As coisas estão uma merda lá fora. Já tem gente indo embora. Eu sinto muito, amigo. — Foram suas primeiras palavras.
    Meus olhos, marejados, respondiam por mim.
    No primeiro dia, ele preparou comida para nós, ao ver que eu só estava me alimentando de enlatados. Conforme o tempo passou, desabafei com ele, contei toda a história que ele já sabia, desde o início. Eu dediquei muitos anos de minha vida àquele projeto, e agora seria tudo desperdiçado.
    — No fim, amigo, não é tudo em vão? A humanidade não vai viver para sempre. Esse planeta está se acabando, assim como um dia a própria raça humana vai acabar. Cada construção, relacionamento, governo ou projeto, tudo isso ruma para alguma espécie de fim.
    Era difícil pensar no fim. Mas Curacciao ouvia minhas palavras e dava suporte aos meus sentimentos. Alguns dias depois, os sensores térmicos indicaram anomalias, e foi necessário começar a arrumar as malas. Sem pressa, ele me ajudou a empacotar tudo. Cada roupa, computador, experimento. Eu demorei pra largar o osso, eu insistia em procurar soluções científicas pra consertar tudo aquilo, mas com paciência ele me conduziu a me preparar para a despedida. Pegou um vaso de hortelãs que eu estava cultivando dentro de casa, cobriu-o com cuidado para não estragar as folhas. Disse que seria uma boa lembrança, e que eu poderia cultivá-las na casa nova.
    Quando tudo estava pronto, vestimos nossos trajes. Conferimos nossos níveis de oxigênio, e desligamos a pressurização da casa. Em pouco tempo, meu lar se esvaziou, ficou completamente oco. Levamos as caixas para a nave de Curacciao, estacionada a poucos metros dali. As outras casas ao redor já estavam todas vazias. Até onde eu podia enxergar, eu era o único permanecendo por tanto tempo.
Estávamos terminando de guardar as caixas na nave, quando em uma estrutura rochosa, centenas de metros ao longe, vi a primeira rachadura surgir, uma enorme fenda na pedra. Do buraco, lava jorrou como um vulcão em erupção. Não muito longe dali, a enorme construção metalúrgica, na qual trabalhavam centenas de pessoas, já estava desligada, sem mais nenhum funcionário, nenhuma luz acesa. 
    Logo, não sobraria mais nada naquele planeta. É o que acontece quando um processo de terraformação falha. O núcleo se expande, magma invade a crosta. Algumas décadas depois, aquele local seria novamente apenas mais uma rocha flutuante e inabitada num sistema solar qualquer. Todos esses anos, investindo nesse planeta que tinha o potencial de ser tão belo e cheio de vida!
Enfim, decolamos. Enquanto nos afastávamos daquele mundo condenado, lembrei de algo que Curacciao me disse repetidamente naqueles dias. 
    — Nem tudo tem solução, camarada. Nem tudo vai se encerrar de forma poética, fechando um ciclo perfeito com significados esotéricos. Isso é besteira. Às vezes é necessário apenas pegar as malas e seguir em frente rumo ao próximo destino, deixando os destroços dos antigos sonhos para trás.
    Olhei para o vaso de hortelãs. Alguns ramos eram novos, neles surgiam folhas pequeninas e bem verdes, que logo ficariam grandes como as folhas do resto da planta. O que posso dizer? Ele estava certo.
É um bom amigo, o Curacciao.


Autor: Wilson Faws
São Paulo, SP


Share:

2 comentários:

EDITORA A LITER AÇÃO

EDITORA A LITER AÇÃO
Clique na imagem para visitar o site da nossa editora

INSTITUTO A LITER AÇÃO

INSTITUTO A LITER AÇÃO
Clique na imagem para conhecer nosso curso

REVISTA FLUXOS

Tradutor

QUEM SOMOS?

Espaço destinado a aventuras literárias e artísticas diversas... O nosso objetivo é o compartilhamento das palavras, das ideias, das experiências... Sempre como travessias em fluxos de devir...

Total de visualizações de página

O blog pelo mundo

Seguidores