quinta-feira, 8 de setembro de 2022

AMÉFRICA - POR POLIANA PITERI BARROSO

    Com muita alegria, publicamos hoje a resenha crítica de uma amiga e colega de profissão, uma artista maravilhosa que nos brindou com sua análise sensível e profunda. Trata-se de uma análise da peça AMÉFRICA, que está em cartaz na cidade de São Paulo.

Esperamos que todas e todos gostem da análise e que se sintam instigados a assistirem ao espetáculo!


AMÉFRICA: Um estupro de corpo e alma 

Por Poliana Piteri Barrroso

    Para quem está habituado a ir ao teatro neste mundo paulistano pós quarentena tem se deparado, no âmbito do teatro de grupo, com tentativas de textos pós-dramáticos ou adaptações de grandes clássicos. Em comum na cena, o que parece um protocolo a ser seguido: palavras de ordem contra o governo atual, palavras de ordem sobre racismo, machismo e outras opressões e o reforço, dito sempre com uma força de palavra escrita em negrito, do uso de pronomes neutro: a palavra todes está sempre presente em destaque. Os recursos do teatro épico também estão sempre vistos: quebra da quarta parede, a conversa com o público, interação ora engraçada, ora sutil.  Neste contexto, esqueça tudo que você viu deste teatro e vá assistir Améfrica em 3 atos.  
    A peça faz sentido desde o nome até o final, quando somos presenteados com um pouco de música indígena contemporânea, conforme nomeia o músico Edivan Fulni-ô. Mas de antemão comunico: não vou me ater aqui ao enredo das histórias ou a sinopse da peça. Espero que depois de lerem sobre minha experiência se sintam entusiasmados para uma ida ao teatro. 
    Me senti esteticamente provocada. O espetáculo traz à tona as opressões vividas ao longo da história pelos povos originários e pelos africanos sequestrados e trazidos à força para a América. Com recursos cênicos nada óbvios, com um tom futurista através do uso de projeção, dos microfones, figurinos… A ausência de cenário dá valor ao corpo, à dança e ao ritual em cena. Os estilos musicais escolhidos aproximam o público e resgatam parte da cultura dos povos que protagonizam a cena. Assim como as falas que são ditas em dialeto indígena e intensificam a experiência estética e sonora enquanto faz pensar: nada sabemos (sei) desses povos…
    O texto, escrito cada ato por uma diferente dramaturga, ganha uma consonância nas mãos do diretor Eugenio Lima (que nunca decepciona, como gritou uma pessoa da plateia ao final da peça).  São três atos, três histórias. E encontramos a mesma linguagem cênica nelas enquanto apreciamos o elenco em diferentes linhas de interpretação e degustamos impecáveis atuações em um elenco afinado, que interage com olhar, com fala, corpo e gesto. A alma está presente no jogo, os olhares irradiam. Da plateia me senti arrepiar. 
    A peça traz à tona a valorização das ancestralidades (retomada!) dos povos originários e africanos numa bem-sucedida tentativa de mostrar que a perda dessas ancestralidades é a perda da identidade desses povos. A ausência dessa história na nossa história é a força motriz para o racismo estrutural nosso de cada dia, encontrado em cada momento e em todos os lugares. Não falar sobre essa história é como concordar com a história mentirosa enfeitada pelos europeus. Como dito em um momento da peça, “já somos adultos” e não precisamos aceitar essas histórias como nossas e nem como verdades. 
    Também estão presentes em cena diversas referências literárias como Fanon, Lélia Gonzales, Abdias do Nascimento, Carolina Maria de Jesus e outras tão importantes. E se utilizando do recurso brechtiano, o elenco em diversos momentos se senta na boca de cena e conversa conosco, público, para falar um pouco de história, de literatura e propor uma visão não eurocêntrica dos acontecimentos passados. Esse recurso épico tão bem utilizado e feito de forma poética, não torna a peça didatizante, pelo contrário. O teatro é espaço democrático e coletivo por excelência, por isso, não é sobre o que eu, enquanto indivíduo sei e conheço ou preciso vir a saber e conhecer; é sobre o ritual de estarmos juntos, naquele tempo espaço, escutando um grupo que se propõe cenicamente a falar e tratar de assuntos que já deveriam ser debatidos amplamente e em todos os espaços. E sabemos por que não o são.  E embora o teatro venha trazendo à tona frequentemente discussões nesse nível de importância, Améfrica o conseguiu com uma excelência artística que foge do óbvio, trata de ancestralidade com estética futurista, faz o resgate histórico para debater o momento presente, se posiciona sem panfletarismo batido e ao modo como Augusto Boal gostava: nos incita à ação, para além da reflexão. Renomear, retomar. 
    Como já disse, a peça nos provoca.  E finalizo aqui com uma da frase do 2 ato, que era mais ou menos assim: “Pra quem tem consciência de que isso é político e não só mais uma performance artística” 
    Assistam Améfrica em 3 atos, do Coletivo Legítima Defesa. Assistam! 


Poliana Piteri Barroso

           Atriz, diretora de teatro, professora de História e Arte e autora do livro “Entre Outras...” pela editora Giostri.
Pós-graduada em Teatro Educação, é fundadora da Cia Naturalis de Teatro, atuando no teatro há 20 anos.
Mãe da Liz e excessivamente leitora.




Serviço:

AMÉFRICA: Em Três Atos, do Coletivo Legítima Defesa
De 18 de agosto a 18 de setembro de 2022
Temporada: quintas, sextas e sábados às 20h, e domingos às 18h
Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93 – Pompeia – São Paulo/SP




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Um comentário:

  1. Temos muito que aprender com esses irmãos esquecidos. Excelente crítica! Me senti na plateia!

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