segunda-feira, 7 de junho de 2021

UM SOLILÓQUIO DO ABSOLUTO

Com as reflexões que tenho feito sobre a historicidade da obra de arte, resgato esse texto que escrevi há dez anos, onde busco analisar de forma um pouco mais técnica (será?) a questão... Nem sei se concordo mais cem por cento comigo, mas acho que vale confrontar-me nesse momento...
Esse texto faz parte do meu último livro PEQUENA LOJA DE ARTIGOS EM GERAL, disponível na Estante A Liter Ação...
Espero que todas e todos gostem!

UM SOLILÓQUIO DO ABSOLUTO

Um autor existe em sua obra? A obra é atemporal? A sociedade em que foi criada influencia a obra? A obra é uma entidade autônoma, livre de relações históricas, políticas, filosóficas, emotivas? São tantas perguntas e um mesmo número de possíveis respostas... Uma análise nesse sentido precisa, necessariamente, ser muito cuidadosa, para não correr o risco de carregar uma parcialidade nociva. Entretanto, ficar flutuando sem uma posição definida, acreditando que vale tudo, é igualmente perigoso.

        Certa vez, dois pesquisadores travavam um singelo, porém significativo debate, que girava em torno da seguinte questão: conhecer a vida do autor, através de um estudo biográfico contextualizado, que busca informações não só sobre o autor, mas também sobre o mundo em que o mesmo vivia, modifica a leitura que pode ser feita da obra desse autor?

    Um dos debatedores, filósofo de formação e pesquisador de existências humanas (um biógrafo compulsivo e comprometido com a descoberta das grandes verdades nas pequenas existências), defendia vigorosamente a relação essencial entre a vida do autor e sua obra. O outro debatedor, artista de formação e ação, transgressor de alto potencial anárquico, ria respeitosamente da cara do filósofo, dizendo que o autor, por mais que tente se mostrar na obra, acaba gerando uma entidade totalmente independente, quase um novo Frankenstein, que não quer saber de nenhuma relação com o seu criador.

    Fica nítida nesse debate, mesmo que de forma empírica, uma influência das principais tendências da Literatura Comparada. O filósofo assume o papel de defender as ideias da escola soviética, percorrendo perifericamente o ideário francês, enquanto o artista é um norte-americano em potencial. Quem está com a razão?

    Tentando fugir das obviedades, existe uma relação importante entre o mundo do autor e sua obra. Shakespeare só escreveu Romeu e Julieta porque leu o poema de Arthur Brooke. A Inglaterra elisabetana é co-responsável pela obra. Entretanto, o gênio de William transformou um poema ruim, de um moralismo quase ridículo, em uma das maiores obras literárias e teatrais de toda a história. E a importância da Inglaterra elisabetana nessa transformação é relativa, quando não questionável. Romeu e Julieta passaram a existir em Verona. A estátua dos dois jovens, construída no final da história, existe realmente. Essa magia é fruto da existência autônoma da obra. Romeu e Julieta são ícones da humanidade.

    O dramaturgo alemão Heiner Müller escreveu, em 1977, Hamlet-Máquina, relendo primorosamente Shakespeare (William está em todas. Afinal, ele é o cara). Nesse texto fica aparente a existência de um alemão que viveu o horror da Segunda Guerra. Hamlet é, nesse contexto, o judeu perseguido e o soldado nazista. Entretanto (mais um dos muitos entretantos possíveis e importantes), o príncipe dinamarquês está lá. Isso porque ele existe de verdade, independentemente do pai William (adotivo, é claro). E o jovem ator que, vinte anos depois, interpretou esse Hamlet, deixou-se invadir por ele, pois Hamlet vive no Brasil do século XXI.

    O grito de Edvard Munch está presente na execução assassina de Joseph K. O norueguês que nasceu antes e morreu depois influenciou o tcheco? Ou foi o contrário? Aliás, a ressurreição de Joseph K no castelo é influência ou desafio aos evangelhos? A Guernica de Picasso é a guerra ou transpassa esse horror e transforma-se em um libelo vivo e atuante?

    Uma obra carrega o seu autor e o mundo dele. É possível estudar a História da humanidade através da Literatura e da Arte. Entretanto (esse é o último), a obra sempre ultrapassa os limites do tempo e do espaço. Fazer uma abordagem historicista ou sociológica de uma obra literária pode ser importante num primeiro momento. Mas chega o momento de abandonar-se à própria realidade da obra para não correr o risco de ficar boiando na superfície do mar da França (os soviéticos navegam, de certa forma, nesse mar). E o mergulho que leva a esse abandono é americano.

    A posição colocada acima não é o perigoso flutuar indeciso citado no início dessas linhas. Não se trata de ficar em cima do muro e aceitar tudo. Trata-se, sim, de perceber que as abordagens historicistas e sociológicas servem apenas como preparo (quando esse preparo é necessário) para o mergulho no universo pleno da obra literária (mergulho possível apenas na literatura ficcional. A literatura científica e documental é outra coisa, pertencente aos filósofos biógrafos e aos acadêmicos caçadores de dragões), uma entidade independente, com vida própria.

Autor: Roman Lopes

Guarulhos - SP

Escrito em 2011

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2 comentários:

  1. Concordo plenamente que "o autor(a), por mais que tente se mostrar na obra, acaba gerando uma entidade totalmente independente, quase um novo Frankenstein, que não quer saber de nenhuma relação com o seu criador". Mas faço apenas um complemento, que considero realmente importante: o autor(a), muitas vezes, também não quer relação com a sua criatura, até porque, apesar de, obviamente, o criador(a), ter uma "interação" quase "carnal" com sua(s) criatura(s) no momento de criá-la(s), ele(a) não se reconhece nela(s)... E a ligação entre criador(a) e criatura é, geralmente, bastante temporária, pois logo surgem outros Frankensteins. O que cabe perguntar: Será que, na verdade, não seria o autor(a) um Frankenstein de si mesmo?

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    Respostas
    1. Olá, Janethe!
      Suas colocações são muito importantes para a nossa reflexão... E a questão final que você levanta é bastante pertinente!
      Mais uma vez obrigado por sua rica colaboração!

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