quarta-feira, 9 de junho de 2021

A FEITICEIRA DE HONZI

Com alegria ainda mais expansiva publicamos mais um texto do nosso amigo Benjamin Pedro João, escritor de Moçambique, que muito nos honra com a beleza da sua literatura... Vemos como uma oportunidade rica e maravilhosa de conheceremos um pouco mais a literatura daquele país...

Esperamos, mais uma vez, que todas e todos gostem!

 

A FEITICEIRA DE HONZI

    O Land Rover que levava a brigada distrital de recenseamento populacional afrouxou a marcha, ao entrar por uma picada de solo árido. A estrada de solo seco, com pedrinhas amalgamadas no chão, lembrava aqueles lugares onde nunca caía chuva. Mas era essa estrada que conduzia à sede distrital de Honzi.

    Mas antes de lá chegar, o motorista ainda tinha que lutar contra a sinuosidade do solo, que fazia o carro arquejar e quase perder a rota; saltando perigosamente nas covas, fazendo as cabeças do pessoal que ia na cabine do carro dançarem.

    Todos, pelo menos quase todos eles, viram, ao mesmo tempo, aparecer, um edifício velho bem de longe, então perceberam que estavam em Honzi. Enquanto se aproximavam do edifício, viram em frente dele um tronco em pé, que era um dos pilares carcomidos pelas térmites, que parecia sustentarem toda aquela decrepitude. Em frente do qual havia uma tábua, escrita com letras pretas, quase ilegíveis, triste, como era o resto da povoação, assim: Sede do distrito de Honzi.

    Os quatro ocupantes do carro, mal o motorista parou, desceram do carro para tomar o ar de fora. Umas quatro crianças magras, feias, maltrapilhas, apareceram diante deles e começaram a gritar estridentemente, com vozes de tosse: é carrei, é carrei.

    As crianças riam com as gengivas escuras e pestanas cobertas de poeira, guinchando quais macacos, à volta do carro, sacudindo os corpos que lembravam morcegos de asas esticadas, que pareciam crescer diante dos forasteiros.

    Rui, encostado ao carro, não estava a perceber a razão de tanta algazarra. “É carrei, é carrei?” – Pensou, metendo as mãos nos bolsos, numa atitude de isenção. Ele não percebia que para uma criança das zonas recônditas, como é o caso de Honzi, ver um carro era como ver o cometa Haley.

    Rui alongou o olhar para longe, uma floresta densa e uma montanha delimitavam a sede do distrito. Não muito longe donde o carro estava parado, havia um fontanário, onde duas mulheres negras, vestindo capulanas e blusas modestas, acarretavam água em bidões que punham à cabeça.

    Rui, que olhava para aquela gente com desinteresse, deu-se conta de que havia uma terceira mulher que o fitava debaixo do alpendre, perto do edifício da sede. Quando deteve o seu olhar nela, percebeu que já havia algum tempo que aquela mulher estava a fitá-lo.

    Seus colegas, nesse momento, estavam a falar do tema corriqueiro: a globalização. “Isso não passa de pendurar os colhões no ar, amigo” – dizia José Manuel, um componente do grupo. “Achas que os nossos governantes são altruístas para os demais? Já viste o tamanho dos seus bolsos, quando aparecem em público a discursarem nas suas paranoias? ”.

    Era Mário.

    A miséria daquela mulher no alpendre era comovente. A blusa de chita parecia uma sobra de um pano de limpeza. Como era possível haver tanta desgraça nessas pessoas? – pensava Rui, muito alheio ao que os seus colegas diziam. Mas… Ao levantar novamente os olhos, viu como um flash de uma máquina fotográfica, que aquela mulher sorriu para si, lançando abertamente um repto, aquilo que se entende como a chama de uma fêmea que quer seduzir um macho. Será? – Perguntou-se ele.

    Como uma mulher tão pobre se atreveria tanto? Agora, quando olhou novamente para ela, para tirar a prova dos nove, teve certeza do que desconfiara…

***

    À noite, no quarto, ainda Rui não tinha adormecido. A vela acesa que iluminava o quarto era um total contraste da escuridão que se via lá fora. Os seus companheiros, no outro lado do tabique, já dormiam, pelo menos foi isso o que pensou, porque havia já algum tempo que tinha deixado de os ouvir a trocarem palavras.

    Então, foi quando, como num sonho, viu um vulto algo surreal, no quarto! Surpreendido por essa mudança operada naquele meio, levantou os olhos e viu uma mulher dentro do quarto.

    - Quem é você? – Perguntou a gritar, cheio de medo.

    A mulher não estava vestida, mas também não estava completamente nua; pois, além de uma certa nudez da sua parte sensual, trazia umas missangas, uns trapos nas ancas; ela, ao ver Rui atemorizado, sorriu-lhe.

    - Quem é você, o que quer aqui? – Insistiu Rui, levantando-se da cama e com a vela na mão.

    A claridade da luz iluminou o rosto da mulher, o que o deixou totalmente estupefacto. Era aquela mulher que vira à tarde, no alpendre da sede! Ela, porém, vendo-se reconhecida, distendeu o riso, a boca mostrou-se toda, qual de vampiro esfaimado, querendo um beijo.

    E ante o seu pasmar, ele viu-a a mostrar-lhe as carnes horrendas da sua libido terrível de espírito negro e nocturno. Rui ficou petrificado. Ele ficou deveras chocado com aquela cena, mas quando voltou a cabeça, notou que ela já não estava no quarto!

    Foi nesse momento que se recordou o que lhe dissera o seu pai antes da sua partida para Honzi: “Deves colocar esta raiz na cabeceira, debaixo da almofada, quando uma delas te vier tentar, à noite, poderás vê-la a olho nu, porque em Honzi há muitos “nfitis” (feiticeiros), que se divertem com estrangeiros, tomando-os por brinquedos sexuais!” 

 

Autor: Benjamin Pedro João

Maputo - Moçambique

Escrito em 2004  

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4 comentários:

  1. Grande Roman, o texto de Benjamin Pedro João tem um delicioso sotaque moçambicano e nos brinda com uma narrativa que enfeitiça até o último parágrafo. Parabéns a ambos!

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    1. Valeu, Anderson!
      Os textos do Benjamin são realmente fantásticos!

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  2. Boa tarde!

    Quando será a chamada nº 5 da revista para narrativas em Devir?

    Quero participar!

    Ione Morais

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    Respostas
    1. Olá, Ione!
      Ficamos felizes em saber que você quer participar... Será uma alegria recebermos o seu trabalho...
      O número 4 da revista será publicado até o final desse mês. Só no mês que vem (julho) é que começaremos o processo para o número 5...
      Mas acompanhe as nossas postagens que você será informada!
      Um abraço!

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