quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

TURBA TURVA

Hoje vamos publicar mais um texto do escritor nigeriano Diara Olugbenga, que nos foi apresentado pelos nossos colegas do Mídia Remota... São palavras mais do que necessárias, mesmo com os novos ventos que sopram por aqui...

 

TURBA TURVA

RELATOS FICCIONAIS (?) DA NEGRURA COTIDIANA

1.

Ele andava pela rua com sensações contraditórias. Estava relativamente tranquilo, pois o caminho era o mesmo de todos os dias. Ao mesmo tempo, estava apreensivo, pois as últimas notícias o deixaram muito assustado. Caminhava tão absorto em seus pensamentos que não percebeu a chegada da viatura, estranhamente silenciosa em sua aproximação. Não houve tempo para nenhuma reação.

Os quatro soldados ocupantes do veículo postaram-se ao seu redor e não fizeram nenhuma pergunta. Um o empurrou contra um muro, pressionando-lhe o pescoço, enquanto outros dois seguravam seus braços, impossibilitando qualquer reação. Somente um parecia hesitante, como se estivesse confuso com tudo aquilo que acontecia.

Querendo saber o motivo daquela abordagem, ele tentava pronunciar algumas palavras, para mostrar aos soldados o engano que estavam cometendo. As palavras não saíam, pois a pressão do braço policial impedia a passagem de uma quantidade maior de ar do que aquela, quase insuficiente até para que ele continuasse respirando. Na tentativa desesperada por um pouco mais de ar, ele consegue desvencilhar um dos braços, empurrando, então o braço que o sufocava, para quem sabe conseguir pronunciar alguma palavra em sua defesa.

Foi o suficiente para uma saraivada de socos e pontapés, que continuou mesmo depois de ele ir ao chão.

Ele não sabe quanto tempo durou tudo isso, pois não abriu mais os olhos.

Quem é – ou era – ele?

Não sabemos. E nunca saberemos.



2.

Ela varria a calçada diante de casa. O horário não era muito apropriado, dado o avanço da noite. No entanto, ela não tinha outro momento para fazer aquilo, pois chegava do trabalho com a noite já mostrando todas as suas faces e saía sempre muito cedo. Às vezes acordava antes do horário para fazer essas tarefas domésticas, tinha que aproveitar os momentos em que os filhos estavam dormindo.

A concentração colocada em um afazer trivial, típica de quem sente certa satisfação com o asseio, aliada à preocupação com as tribulações da vida e com o futuro dos pequenos, não permitiu que ela percebesse a sonora e luminosa aproximação da viatura. Na verdade, ela até escutou o ruído da sirene e viu pelos cantos dos olhos as luzes piscantes. Porém, ela não imaginava que a viatura fosse parar diante da sua casa.

Ela ficou sem reação quando os três ocupantes saltaram sobre ela, sem falarem absolutamente nada. Empurraram-na para dentro da viatura e abafaram seus gritos, que estavam apenas tentando dizer que era um engano. Com os olhos totalmente tapados por mãos que sequer sabia de quem eram, ela só lembrava-se dos filhos que ficaram sozinhos. Começou a pensar que nunca mais os veria e que a solidão deles seria interminável. Não conseguiu distinguir o tempo ou o espaço percorridos. Sequer tinha ideia dos motivos de estarem com ela.

Quando a viatura parou em um terreno escuro e afastado de qualquer sinal da existência de pessoas, ela começou a ter noção do que iria acontecer. O desespero, que já era imensurável, tornou-se insuportável. E ela começou a fazer a única coisa que era possível: gritar e chorar. Os três homens que a tinham levado não se importavam com os gritos, pois tinham escolhido com precisão aquele lugar ermo. E nessa luta injusta e inglória, eles fizeram o que quiseram com ela, abandonando-a naquele mesmo lugar. Ela não conseguiu ver nada, os rostos dos homens, a placa da viatura. Nem sabe quanto tempo ficou deitada naquele terreno desconhecido.

Com os primeiros raios de um amanhecer tenebroso, ela começou a caminhar de volta para casa, com as roupas rasgadas, com o corpo machucado, com uma dor que ninguém saberia entender e com o pensamento único de estar em casa quando os filhos acordassem.

Naquela noite a viatura deveria sair do quartel com quatro soldados, para a ronda de rotina. Um deles, já antevendo o que os outros estavam dispostos a fazer, arrumou alguma justificativa para não acompanhá-los, pois não gostava de se envolver nessas coisas.

O que isso adiantou para ela?

Nada.

Ela sequer virou estatística, pois a necessidade de sobreviver e criar os filhos foi a única coisa que restou.



3.

Ele pegou a moto do pai sem permissão. Sabia que o pai não deixaria, uma vez que ele não é habilitado. Aliás, quando o pai descobrir, ele estará perdido. Seguramente uma bronca e um castigo, provavelmente uma surra. No entanto, valia a pena. A sensação dessa jovem aventura, unida à de uma liberdade nunca experimentada, levaram-no a outros mundos e ele já se imaginava o maior de todos os pilotos, capaz de pilotar de motos a aviões supersônicos.

As imaturas ilusões próprias da idade misturaram-se com uma alegria docemente irresponsável, típica dos adolescentes, fazendo com que ele vivesse naquele instante, de tal maneira, um mundo totalmente paralelo. Quando os dois tiros o atingiram, um no capacete e um na perna, ele não soube determinar qual deles chegou primeiro. A queda e a visão embaçada marcaram o fim da sua glória, mas não do seu sofrimento.

Com a cabeça encostada no asfalto quente e com a visão opaca, ele enxergou as luzes rodantes, em tons de azul e vermelho conhecidos; enxergou os coturnos que se acumulavam ao seu redor e não soube contar exatamente quantos, chegando a ter na cabeça um número ímpar, o que de certa forma trouxe certa ironia àquela situação, pois ele não sabia dizer ser alguém estava indo embora ou se um dos donos daqueles coturnos possuía apenas uma perna.

As vozes abafadas pronunciavam palavras quase irreconhecíveis e ele distinguiu apenas documentos e não, sem saber em que ordem elas foram ditas. Sentiu o capacete sendo arrancado de sua cabeça e o impacto de mais um tiro no peito. Depois disso, não sentiu mais nada.

O pai foi informado do roubo no mesmo dia, pois a sua moto havia sido recuperada. O corpo do filho, ele só conseguiu ver cinco dias depois, em um terreno distante.



Obs.: O que essas três histórias têm em comum? O desprezo pela vida, a violência naturalizada e, é lógico, a cor da pele de seus personagens.

 

Autor: Diara Olugbenga

Escritor nigeriano radicado no Brasil. Nasceu em Kaduna, no ano de 1978, vindo para o Brasil aos 21 anos de idade, após aquele que ficou conhecido como o Massacre de Odi, ordenado pelo líder do país, Olusegun Obasanjo.

 


 

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2 comentários:

  1. É muito triste, mas, de fato, coisas assim acontecem todos os dias em nosso país. Até quando?

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