terça-feira, 18 de outubro de 2022

DESPEDIDA À LA LYGIA

 Publicamos hoje as melancólicas linhas de uma narrativa plena de poesia, de uma escritora cearense...

Esperamos que todas e todos gostem!


DESPEDIDA À LA LYGIA


    “Já que é preciso aceitar a vida, que seja então corajosamente”¹ – declarei à soleira da porta, sem lembrar que citava alguém. Tinha lido tantas vezes que sentia correr em minhas veias. Não, nas artérias: palavras cheias de oxigênio. Se não me falham os neurônios, houve tempo em que pensei tatuar. Sem decidir o melhor trecho da pele, sumiu o trecho completo do livro. Ficou o corte.

    Expressei, não por orgulho ou maldade, mas porque achei justo que você soubesse como e porque tudo começou a ruir em nosso lar. Queria que entendesse, mesmo sem compreender.

    A dama feneceu no começo de abril. Repercutiram um tanto de seus pedaços por aí e, por sua morte, fui obrigada a atinar: ao oposto, ou nem tanto, seguia eu viva. Com medo, mas viva. 

    Há frases que furam como pregos. E a lembrança dessa seguiu me martelando por dias. Não adiantou remover o finco. A marca estava feita. Se há um belo quadro a ser pendurado, é fundamental que se faça buraco no tijolo. Aceita-se. A beleza cobre as falhas e esquecemos a que custo mantemos a graça exposta. Mas, às vezes, a força do martelo supera o necessário e a parede racha. Ou a gente descobre que a divisória era malfeita e vinha se deteriorando no silêncio do tempo. Logo vemos que nada, nem mesmo o que há de mais leve, mantem-se firme ali. 

    Depois de escancarado e encarado o defeito da estrutura, “o que seria loucura, recusar a realidade ou pactuar com ela? ”

    Ok, meu bem. Não vou fingir que explico por benevolência. Sem cinismo ou pretensão de inocência por aqui. Não acredito em inocentes. Nem culpados. “Não há gente completamente boa nem gente completamente má, está tudo misturado e a separação é impossível”, certa feita, ainda jovem, a sábia cravou. Também sou gente, assim, comum. Só quis registrar, numa carta caprichosamente escrita, que não foi tudo mentira como você bradou. Pessoas magoadas ficam tão turvas como as próprias visões. 

    Havia, sim, amor na fundação da nossa casa. Muito amor. Mas as estações foram várias; ventos e chuvas intensos nos visitaram; seguidos de dias de sol escaldante; e tudo de novo, mil vezes, e de novo, mil vezes. Faltou manutenção.

    Então recuso sair como falsa e nos deixar como farsa. Não autorizo calúnias, como não permito calos, ou cale-ses. Ao pé da porta, falo baixo, mas grito. E vou embora sem levar na bagagem nada que não seja meu. O leviano, não levarei. 

    Houve tempo em que tudo estava claro como Sol a pino, manhã sem nuvens, sombras curtas. Mas anoiteceu e a lua não veio. Devia estar renovando-se à sombra como eu. E, por receio de ser só a dificuldade de enxergar em meio do breu, não sai. Fiquei até a alvorada clarear o horizonte, atravessei a noite com a mão encostada em seu ombro, assistindo a você dormir. Era para ter certeza de que haveria novo dia, porque, confesso, cheguei mesmo a duvidar. Já fomos nosso universo particular, não foi?

    Mas a Terra é mesmo redonda e o dia raiou sobre mim. Senti o calor e a certeza de que gostaria de atravessar, este e todos os outros, longe daqui. Longe de nós. 

    Entendi que nossos nós andavam me sufocando há tempos. E, hoje, escolho não me enforcar. Nem permitir que você, justo você, seja meu torturador². Aquele que mostrará na capa do jornal uma foto montada dizendo: se suicidou, a coitadinha. Não merecemos entrar para a história assim.

    No meu novo lar, amanhã, vou ler outro volume dela. Vai revelar: “Descobri outro dia que a gente só se mata por causa dos outros, para fazer efeito, dar reação, compreende? Se não houvesse ninguém em volta para sentir piedade, remorso e etc. e tal, a gente não se matava nunca. ” Vou rir, embora seja triste. É muito intenso isso de querer se sentir amado. Por que a gente passa a vida inteira ansiando aprovação? Sufocando qualquer suspiro de individualidade para ser parte? Não posso mais, amor. Não vou morrer, nem viver, em busca da sua aceitação. A partir de hoje, sem remorso ou piedade para mim.

    Você tem razão em uma coisa. E talvez em tantas outras, mais do que eu gostaria de admitir. Às vezes, partir é a maior covardia. Pensei muito sobre isso no meio da longa noite, como sempre refleti muito sobre tudo que conversamos. Mas o dia raiou, meu bem. E a verdade é que eu tenho mesmo de ir. Vejo nitidamente, em diversos tons de azul. 

    Vou ser meu próprio lar. Abrir a janela para o nascente, como queria lá no início do projeto quando aceitei ser convencida do contrário. Ouvi dizer que valoriza, porque nunca esquenta. E eu não quero mais esquentar a cabeça ou esfriar o coração. Você me entende? Levo comigo quase nada. Preciso mais de movimento que de móveis agora. Concordo que “se é difícil carregar a solidão, mais difícil ainda é carregar uma companhia. ” E acrescento: mais difícil que os dois, é seguir carregando esta solidão acompanhada. Estamos muito sós aqui juntos.

    Mas “não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas.” Quem sabe, se a gente conseguir lavar com água corrente e sabão, elas cicatrizam bem e ficam quase imperceptíveis. Um dia poderemos contar a história de como as benditas se formaram, até mesmo rindo um bocado. Ou talvez respondamos a um curioso que venha encostar o dedo e perguntar sobre algo que já não víamos há tanto tempo: sabe que não lembro como foi!? Se não estiverem infeccionadas, considero a capacidade de esquecer os tombos uma benção.

    Certo é que “o dia em que o sonho nos abandonar, nós estaremos tão tristes, vivos, mas tão tristes como se tivéssemos morrido.” Então, se o sonho da casa própria acabou para nós, se precisei aceitar que essa morada caiu sem estrondos, rogo que você entenda: não posso ficar soterrada aqui. Que sorte a minha ter coragem de procurar novo terreno para voltar a construir!

    Daqui um par de meses, enquanto leio recostada na rede de tecido grosso que levo como cama temporária sem imaginar que se tornará permanente, sinto você enfim encontrar o bilhete que deixei escondido na gaveta dos jogos. Cito ela, que apesar de ter nos afastado, daqui para frente me lembrará de você: “na realidade o amor é uma coisa tão simples. Veja-o como uma flor que nasce e morre em seguida porque tem que morrer. Nada de querer guardar a flor dentro de um livro. Não existe nada mais triste no mundo do que fingir que há vida onde a vida acabou. ”

    Adeus, minha flor.

¹ - Todas as citações em aspas são de Lygia Fagundes Telles.

² - Entre o primeiro e o segundo turno da eleição de 2018, Lygia Fagundes Telles foi uma das signatárias do manifesto de escritores e mercado editorial em defesa da democracia, com críticas a Jair Bolsonaro (PL) e defesa de Fernando Haddad (PT). <https://www.opovo.com.br/noticias/politica/politica-nas-redes/2022/04/04/lygia-fagundes-telles-apoiou-bolsonaro-escritora-assinou-manifesto-contra.html>. Consulta em 18 abr. 2022. 



Autora: Patrícia Baldez

Fortaleza, CE


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