terça-feira, 16 de agosto de 2022

DJAVANEIO

Publicamos hoje um verdadeiro delírio narrativo, oferecido por um escritor do Rio Grande do Norte... Um delírio repleto de poesia dura, com pitadas de devaneio mágico...

Esperamos que todas e todos gostem!

DJAVANEIO

    Essa história é sobre José, jornalista, jovem justo, joga boliche aos sábados. Era metódico como verso alexandrino, odiava sair do usual, nada de desrotinar. Descortinar. 
Saio da cama, me sacudo, seis horas, banho, seco, troco, beijo. Beijo como se fosse a última, ainda não sabia, ia ser vítima. 
    Saio de casa, sóbrio , sem soberba. Só pra ser o sol, subo no ônibus, olho pro céu, parecia ter gosto de anil, mas mal sabia eu o que estava prestes a me acontecer, me lembro bem, foi começo, começo de abril. Dia primeiro. 
    Certeiro. Sentei onde sempre sento, mesmo assento, assento com a cabeça, moça sorri, nunca a vi, mas então, não deu vinte minutos de viagem ela vira e diz. 

    — Como anda sua vida? 

    Não a conheço, mas ela me pergunta como se já soubesse quem eu era, então não questionei. — Bem, eu acho — Relevei. Frase flui meio falha, sem graça. 

    — Que pena. Uma pena mesmo… — A mulher ruiva, trajes pretos formais, batom vermelho, femme fatale, coque samurai. Me diz desgraça: — Você não faz ideia né? Não faz mesmo. Esse ônibus, ele vai bater em trinta minutos, você vai ser a única vítima, quer dizer, você e ela. 
    Suor, sorriso insípido, tremedeira, canela. 
    — Como é, moça? — Susto, súbito, ônibus sobe lombada. — O que disse? — Agora já são vinte e sete. Não temos tempo a perder . — Em seu colo, uma pasta retangular, abre com destreza. O ônibus alheio, rodo cotidiano. Aspereza. 
    Me entrega, raio-x, mancha, pulmão. Cicatriz. 
    — Moça, mas…o que…que isso significa? Eu nem te conheço. 

    Não o deixou terminar a frase, metástase, catarse. Sem demorar, até onde me consta, ela começou a desvelar toda vida do homem. A parte fingida, a sofrida, a desmedida, a reprimida, a atrevida. Ah, e falou também da pinta que ele tinha na nádega esquerda.
   Ao fim, José, jornalista, jovem justo e que joga boliche aos sábados, estava completamente convencido que, se não morresse nos próximos vinte minutos num acidente de ônibus, morreria daqui a poucos meses 

    — Sem tempo, sem mais teses e antíteses. Fale logo o que quer? 

    Quero que mate uma mulher. Quero que vá até o volante, assuma a direção, siga adiante, que nem chofer, chofer da morte, moça sem sorte. Acelere o máximo que pode e então, quando vir uma moça de vestido vermelho, não precisa nem olhar no espelho, apenas vá, nem lá ou cá, no meio, acerte em cheio. 

    Três homens conversam, a chuva os impede de sair. O primeiro acaba de narrar, o faz sem cessar, fio de mente, não sei se ouviu, ou se viu, só sei que agora narra, indiferente. 
    Um segundo homem interrompe, senta na sala e conta a sua versão, sem intromissão. 

    — Dizem que pedra não fala, pois pra mim falou feito Freud. Disse que estava lá, que viu e que não foi assim, portanto eu digo que você mente. Semente, semente de pedra, cascalho, raspelho rasteja, concreto, sol suado, selva sacana. Disparo. Chute. Me vejo voar, vala, rolo, rocha, paro, fuligem. Vários "vrums" vindo e voltando. Vida vazia, vertigem. 
    Vejo variando das ideias, uma moça, vestido vermelho, espelho. Espelho do olho. Vi as esquinas do corpo, véu, vênus, maçã. 
    Afã. Chorava, ventila a dor para ninguém: A moça que ela gostava, não gostava de volta. Virou refém, se jogou, foi além. 
    Revolta. 
    Sentou do meu lado, pernas retilíneas, coluna arquivolta. Confidenciou alí mesmo, falando a esmo, nem imaginou que uma pedra a ouvia, continuou no ensimesmo: 

    "Pode chorar, morrer, sair, perder
    Não vai ser meu amor" 

    Foi o que a outra disse. Amar ermo. Disse também não ia mais se prender, se entregar, entrelaçar, lamuriar, fazer chover de lágrima. 
    E aí então, depois de falar o que quis, saiu ávida sem vida e se atirou no primeiro ônibus que viu, feito mágica. Lembro bem, dia primeiro, começo de abril. Um terceiro ouvido, dessa vez mais velho. Aparece. 

    — Olho é panóptico, mas nem tudo vê. Às vezes carece, cria, conta, esmorece. — Termina de falar sábio, asséptico. Põe a mão, desavessa bolso, e mostra pro grupelho. 
    — E isso aí, o que seria? 
    — Escaravelho. Carrega o sol entre as patas, o ciclo da noite e do dia, era o que meu avô dizia. "Caso coma um desse, alcançarás a verdade, a primazia." Pois parou por um momento, pegou, mordeu, viu o que passou. Os olhos do velho esbranquiçaram, a voz mudou, mulher, rosto afinou, até encolher. Todos aquietaram, aquiesceram. Olhos que nem reflexo, envidraçados. 

    "A verdade foge aos humanos, a verdade foge à vida. Só quem sabe dela é ela, pois então, me chamaram?" 
    Rostos empasmeceram. Estado, estático, tal estória estremeceu até o mais estoico dos homens. Imagine, uma pessoa num instante ser ela, e no outro não ser mais. Ter outro rosto, outro olhar, outra voz 
    Então todos fomos transportados para a cena, estávamos nos dois pontos de vista. Desordem geral. Tudo fez sentido, desaguou, expandiu. Feito foz, Litoral. Zunir de beija-flor, compondo. 
    Olhamos para a estrada, gesto atroz, mordaz. Um homem vil, viu moça chorando. Transtornado, empurrou, estrondo. Moça morreu, morte sem história. Abstinência moral, crime hediondo. 

    Do outro lado motorista de ônibus. 
    Torpor, acelerou, tédio profundo. 
    Parou um sinal antes, viu moça, viu homem, sinal abriu, poderia ter freado, acelerou, arrogante.


Autor: Gabriel da Costa
Natal, RN

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