terça-feira, 8 de março de 2022

O CASAMENTO DE DUAS AURORAS

No Dia Internacional da Mulher publicamos um texto que não sabemos se é uma homenagem, mas de qualquer maneira é uma narrativa onde a mulher é protagonista...

Esperamos que todas e todos gostem!

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O CASAMENTO DE DUAS AURORAS


    Naquela cidade de um dourado cinza, gotejada por lágrimas de carvão e suor, ela resolve abrir uma morada de víveres delirantes, para quem sabe reencontrar as reticências nunca antes governadas. Deseja um local que consiga traduzir em azulejos perspicazes todas as movimentações das ondas eletrostáticas da natureza, emanando aos visitantes uma energia hiperbórea...

    Para a sua empreitada aeroespacial, ela pensa que a primeira disjunção a ser teleguiada é a determinação do espaço. Então, sem mais lisuras, ela começa a percorrer as reentrâncias e saliências da cidade, em uma esculpida caça às bruxas, ao encontro do melhor lugar para as suas incontidas alusões... 

    O primeiro lugar que ela visita é uma mistura de casa de veraneio com centro de compras. Uma habitação cuja intimidade está exposta em vitrines ressequidas, ao mesmo tempo em que uma energia coletiva emana de todas as escadas, sejam as lisas ou as encaracoladas, que se apresentam aos borbotões. Ela caminha por aqueles corredores etéreos, com a habilidade de uma formiga saciada, descortinando cada detalhe que possa aludir às suas pretensões quase ferventes. O telhado de material indescritível deixa escapulir a luz interna, dando um aspecto opaciante ao ambiente, que confrontado com a luz canina de um sol desanimado, oferece um espetáculo da mais alta gastronomia visual. O piso de madeira perolada, exceto nas escadas, onde predomina um emborrachamento alegórico, traz um brilho achocolatado de uma fantasia em carnaval fora de época. As paredes rebocadas com memórias fugidias, repletas de texturas violáceas, lembram quadros de uma exposição não inaugurada por falta de mecenatos. Tudo naquele lugar traz uma sensação de venda mal casada, o que leva a um estado de dinamismo vernacular, ao mesmo tempo em que remete à ideia de um flanco aberto. Isso faz com que ela não diga nem sim, nem não, mas um talvez hesitante...

    Em outro ponto de contato da cidade com as amoreiras festejantes, ela encontra uma espécie de chácara revolvida; um lugar que lembra um castelo de histórias esquecidas, ao mesmo tempo em que tem um aspecto de caverna pré-estética. Ela caminha entre as árvores suspensas em cipós desenlaçados como se estivesse em uma procissão de maritacas, ouvindo o som do vento que balança flores flutuantes em amarelos azulados e vermelhos prateados. Fica embevecida com aquele frêmito de aromas e sabores quase maternais, enquanto sente que pisa em chumaços de algodão civilizados. Enquanto ela sonha com as protuberâncias daquele lugar, já imaginando todas as páginas das suas fantasias catalogadas ali, se depara com uma fonte de mármore esmiuçado, coberta com uma espécie de musgo coerente e que jorra aço liquefeito. Essa fonte traz a possibilidade de um abandono de incapaz e, com isso, ela resolve deixar sua decisão para depois das festas de fim de ciclo...

    Saindo desse ambiente categórico, com uma animada insistência, ela resolve atravessar uma avenida de papoulas caramelizadas, para do outro lado da mesma espécie de moenda visitar um lugar que, a princípio, poderia remeter a uma escola de almofadas beligerantes. Ao passar pelo frontão franciscano que emoldura uma porta que não se define como de entrada ou de saída, ela atravessa um espaço que pode ser descrito como um purgatório embelezado por alquimias auriculares, pois o que ela sente nesse ambiente é uma sensação de quase direito enunciado, alguma coisa que lembra uma reminiscência de um futuro projetado em feixes de aromas adocicados. Ela caminha convicta por alguns corredores gelatinosos, que atravessam salões decorados com artefatos de uma escala numérica pluridimensional, o que dá ao ambiente uma imagem de visita muito aguardada, com lampejos de reunião de condomínio. Ao descortinar cada um desses corredores, ela sente que está mais próxima de seus propósitos, pois escuta os encantos das polainas obituárias que prescrevem os limites de um silêncio quase ondulante, existente entre as camadas atmosféricas de um prato principal e os espaços plenos de uma cama de hotel com cinco luas. No entanto, ao perceber o baixo teto salpicado de cebolas lideradas por um estilo neoclássico, ela entende que aquele lugar pode intervir de maneira praticamente oblíqua em seus sonhos, o que poderia dar uma sensação de indelicadeza cuidadosa a qualquer pessoa que o visitasse, mesmo depois de um restauro renascentista em cada uma das janelas telescópicas que alternavam suas vozes com os jatos de uma água arborizada. Ela, então, sacode suas tranças impregnadas de comiserações para arriscar outras possibilidades de encarnar suas geografias sonhadoras...

    Ela ainda visita outras incontáveis dezenas de paradas, sempre com ânimo requisitado. Em cada uma delas, percebe que algo não ornamenta suas especiarias, seja porque existe algum recôncavo impregnado de canções de ninar, seja porque os botelhos que encontra em cada urdimento perambulado nos espaços paralelos ressoam sabores de uma outrora melancolia. Por isso, ela pensa que a melhor justificativa que tem nesse instante de refúgio é pensar em tecelagens parnasianas, onde suas aspirações emblemáticas possam habitar, sem receio de haver alguma invasão aritmética. Por isso, ela defende um instante conterrâneo de obliteração estratégica, para em lugar de verdejar canções territoriais, possa enveredar de maneira discricionária em suas próprias projeções teleobjetivas...

*

    Numa outra esquina sinuosa da mesma cidade, outra ela busca, de maneira rudimentar, alguma importância equidistante que possa preencher de imagens laminadas um grande espaço vazio que existe em sua morada imemorial. Não sabe muito bem o que procura, desperdida que está em suas imanências redondilhas. Sabe que está em intensa tamborilada, pois o que pretende com suas rotundas aventuras nada mais é do que conquistar uma sempre rejeitada persuasão...

    Atravessa os tempos urbanos com a velocidade de uma escaleta, prevendo em suas projeções serestas esse encontro tão fortemente ambicionado. A cada eternidade transpassada com a beleza serena de uma noite de orvalho lilás, ela entende calmamente a urgência de seus desejos incontinentes. Por isso não se incomoda com as admoestações inerentes a uma moralidade desenhada com fios de cabelo sem deslizes, tão humanamente impossíveis como artificialmente incontáveis. E segue, definindo cada palmilha a ser detectada com uma suavidade de passeio, ornamentando os instantes determinados por ações em queda com suas pupilas impregnadas de estrelas...

    No amanhecer rosáceo do momento em que todas as pessoas estão desatentas, ela caminha por uma rua tracejada em ponteiros teimosos, erigindo um trajeto de cachoeira oposta, no qual a água sobe uma cratera ilusionista, para despejar sua ardência caudalosa em uma fenda desprovida de cortinas, promovendo a essa hora do dia o espetáculo do início de uma temporada das corridas de jabutis. É o inexato instante quando todas as atenções estão voltadas para uma farta presença das violetas solitárias, quando o pêndulo dos baronatos exibe sua mais ferrenha caricatura. Nesse instante, durante essa caminhada emplumada, ela detecta as mais elevadas consoantes, como um eco obtuso a extravasar suas risadas intermitentes...

    Em tardes desmioladas de seda e marfim, ela visita ansiedades parentescas que habitam ampulhetas insuspeitáveis, na esperança de encontrar aquele futuro remoto já esboçado em suas prateleiras de madeira acolchoada, quando ela sonha com martelos bidimensionais e canecas de chá de melancia. Nos momentos em que seus parâmetros despencam do alto das esponjas amareladas pela passagem das margaridas, ela não se furta de contar carneiros, borboletas e falanges, transformando o calor da sombra solar em vírgulas travessas de pneus embranquecidos por areias efusivas...

    O ocaso embrionário de uma corja de patinetes faz com que ela visite edifícios refrescantes, com elevadores de mediana lividez que transportam pessoas e coisas às dimensões cronológicas dos epidauros e das maledicências, num diálogo cortante que mistura holofotes insistentes com tortas de framboesa. Cada andar da carruagem que ela intriga nesse edifício concomitante representa um minuto a mais em seus dividendos e um trimestre a menos nas explanações polissilábicas das inebriantes penas de pavão. Por isso ela saltita coesa, como se tivesse todo o tempo possível de se guardar em um potinho de cerâmica inviolável, na direção das contações habilidosas dos folguedos passadiços...

    Durante as vinte e duas mil e vinte e duas noites nas quais suas respirações foram calculadas, ela pondera suas discordâncias para dar lugar a uma contínua e interrompida entrevista de desamparo, como se a vontade das capivaras marginais que habitam algum vão escorregadio de um sótão encurralado pudesse ser traduzida em versículos torneados por camadas transparentes de algum tecido combatente. Em cada uma dessas noites, ela habita terraços etéreos, cobertos de porcelanatos esquizofrênicos e paredes paranoicas, para escrever crônicas acetinadas e cantar hinos moleculares, na quase entupida tentativa de conscientizar as românticas gerações das suas inefáveis opções encomendadas…

    Como não sabe definir com a exatidão de uma trovoada farsesca o momento do encontro com os seus trinta e nove sentidos, ela inicia uma vigília sonolenta, na tentativa de se manter atenta aos soluços dos compartimentos que podem, enfim, provocar as reações químicas necessárias para um bolo de alfazemas. E, então, ela simplesmente paira sobre os átimos coroados pelos tornozelos das epidermes, observando as cadeias nucleicas estabelecidas por cartas de sortilégios…

*

    Essas duas buscas pitorescas, outorgadas por essas duas mulheres indefiníveis, mas despudoradamente despreocupadas e constantemente desimpedidas, abordam de maneira delicada e aguda todos os tempos e espaços dessa cidade bem como, por um suave sarcasmo dos destinos itinerantes das andorinhas pendulares, acabam por convergir suas abscissas para as mesmas regiões palatares dessa urbe contemplativa...

    Essa convergência rabiscada dos diversos planos nos quais essas duas mulheres deixaram suas gotejas de veludo e mocassim promove o encontro peremptório dos olhares que, ao se perceberem nas mesmas resmas das anuências ontológicas, organizam ebulições de uma beleza elevada ao quadrado, pois canaliza jorros de uma cumplicidade geométrica em cada janela que se abre para assistir a essa apresentação simbólica da presença feminina...

    Cada uma delas, que antes se pensava envolta em unidade solitária, se descobre na outra que agora baila diante de suas pupilas altaneiras. Uma descoberta plena de afável resistência, que marca de forma resoluta ambas as almas, com o timbre insolúvel de uma paixão nunca antes embalada em seus corações de formidável levedura. E essa paixão faz cessar toda itinerância sedentária que qualquer uma delas pudesse ainda imprimir em seus sonhos de permuta...

    Não existe mais uma busca de espaços fugazes, nem um almejo de tempos ilusórios, pois o enlace dessas duas alvoradas faz deitar pela cidade a silhueta fosforescente de um amor típico das grandes comemorações lunares. E esse amor, com a coloração doce das frutas de qualquer estação, transforma a antes esfumaçada cidade antiquária no habitat original da cortesia mais potente que qualquer poeta pudesse imaginar...


Autor: Roman Lopes

Guarulhos, SP

Escrito em 2021


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