terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

PEQUENAS BORBOLETAS

Publicamos hoje um conto sensível e poético de uma escritora santista, que nos honrou muito com a delicadeza e a força das suas palavras...

Esperamos que todas e todos gostem!

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PEQUENAS BORBOLETAS


    Existe uma borboleta rara, em uma ilha distante, que tem somente um centímetro de tamanho. É geralmente amarela ou branca, é difícil dizer ao certo, só quem realmente presta atenção consegue vê-la no meio das folhas da floresta. Nasce apenas na região norte e, apesar de pequena e ter um habitat bem específico, não aparecendo em outras partes do país mesmo com a vegetação similar, se torna cada vez mais difícil de ser encontrada, quase uma extinção de algo que não consegue nem ser avistado.

    Era nessa borboleta que Midori pensava. Midori era baixa até mesmo pela sua idade, com seus nove anos incompletos e ficava brava quando a achavam pequena para sua idade. O conselho de sua mãe de que “o importante é ser grande por dentro” não a consolava mais. Seu incômodo com esses comentários não era por ser baixinha em si, mas por insinuar que não deveria saber muito por ser “muito criança”. Por algum motivo, Midori odiava ser criança, ou ser tratada como uma, ainda que não verbalizasse para todos, mas sempre escapava uma expressão pelo olhar.

    Sentia-se como a borboleta, semi-invisível, notada somente por poucas pessoas, a sua família. E alguns coleguinhas da sala, talvez? Acho que não. Ela é quieta e se camufla entre eles, de forma que passa despercebida na hora do recreio, ou resolve fazer tarefas na sala de aula mesmo. Sempre fora gentil com todos eles, era uma menina doce e gostava de animais. Infelizmente, seus pais não compartilhavam essa mesma visão, pelo menos não enquanto passavam um tempo juntos em casa. Por algum motivo, apesar de tão jovem, Midori aparentava mais introspectiva e por que não, mais triste.

    Foi no verão daquele ano que seus pais decidiram viajar para o sul, onde era mais quente, por mais ou menos duas semanas. Resolveram, então, ir para onde a pequenina borboleta habita. Arranjaram um quarto de hotel na capital, porém queriam ver um pouco da ilha inteira, já que era relativamente possível fazê-lo em poucos dias. Se pegassem um carro e dirigissem seis horas seguidas da capital, muito provavelmente chegariam até a outra ponta.

    Contrataram um guia turístico que mostrou museus, praias, monumentos, tudo que o dava nesse local que, em termos de atração turística, não havia muita diversidade. Curiosamente, como Midori, alguns dos pontos turísticos eram revoltos em uma aura melancólica. Estavam ligados à guerra e à paz, ao sofrimento e à resiliência.

    A menina estava meio indiferente a esses passeios, apesar de ter gostado de brincar na praia, mesmo com medo de encontrar águas-vivas e de a areia ser cheia de corais; e comer doces de batata doce, sorvete de sal marinho e outras comidas diferentes. Porém, de repente, Midori passou a tossir constantemente. Começou aos poucos, até as crises ficarem tão longas que cansava a criança.

    Os pais demonstraram uma preocupação com essa condição repentina, mas Midori não reclamava, e acharam que deveria ser alguma alergia ao lugar, já que as temperaturas e umidade eram bem diferentes das que estavam acostumados. A poucos dias de terminarem o tour, perguntaram se Midori gostaria de terminar a viagem ou já voltar para casa. A criança nem pensou, logo disse que queria continuar, principalmente para ver uma borboleta rara que a professora uma vez contou na escola. 

    Nos dias finais da viagem, depois de terem passado pela cidade onde o aquário é famoso, que décadas atrás chegou a ser um dos maiores do mundo até ser ultrapassado por outros em metrópoles de potências internacionais; e pelo município onde escultura de vidro é famosa (e logicamente, os pais de Midori fizeram uma oficina e moldaram seus próprios copos, deixando-a assoprar só um pouquinho, com cuidado; e uma crise de tosse veio), chegaram à região mais rural.

    Ali, viram muita plantação de frutas, característica diferente de sua cidade, onde a plantação de chá era bem mais comum, em quadrados perfeitamente delineados pelas colinas; e mais corvos que o normal. 

    Chegaram ao vilarejo famoso pelo abacaxi. A parte habitada daquela vila era tão pequena que parecia que a cidade inteira se resumia na avenida principal. Com somente um semáforo, a população inteira se conhecia e logo a palavra de que havia turistas ali movimentou os mais extrovertidos. Umas pessoas do mercado se ofereciam a mostrar as praias e os parques, sempre ignorando o fato de ter um guia turístico com a família. Imaginavam que eles, os habitantes dali, conheciam mais do local do que ninguém.

    Aceitando as amostras de abacaxi, que Midori amou por ser docinho, o guia perguntou o quão dispostos estavam para fazer uma trilha em um trecho da floresta. Ali era o ponto final da viagem e os pais não estavam muito dispostos a fazer esforço. Midori, no entanto e surpreendentemente, implorou como criança faz quando quer alguma coisa: repetição extrema de “vamos, vamos!”.

    – Midori, você está com essa tosse forte e acho que não deveríamos fazer esses tipos de atividades. Não acha? – disse a mãe preocupada, olhando para o pai como se ele consentisse a mesma opinião.

    O pai ficou pensativo.

    – Mas não é como se nós voltássemos para cá, não é? Melhor aproveitarmos, vai ser rapidinho.

    Midori pulou de alegria e em agradecimento.

    – Finalmente verei as borboletas!

    – Por que você gosta tanto delas? 

    – Porque elas são como eu, mamãe... pequenas.

    A mãe deu um olhar de ternura e preocupação ao mesmo tempo.

    – Bom, parece que perdi essa mesmo. Aceitamos seu convite para a trilha.

    Começaram então a trilha, com os barulhos de cigarras e grilos. A trilha era um tanto desafiadora por conta dos morros. Midori começou a tossir mais uma vez e dessa vez saiu sangue. A menina calou-se, porque queria ver a borboleta, e se contasse, seus pais logo encerrariam o passeio.

    Finalmente, o momento chegou. O guia apontou para a esquerda da trilha e mostrou um casal delas, amarelinhas, voando próxima uma da outra. Eram realmente pequenas! E não passavam mesmo de um centímetro, como a professora explicara!

    Midori ficou super feliz porque, de certa forma, se sentia como elas. Bonitas, mas despercebidas; interessantes, mas perdidas entre todo o resto. Tentou tirar várias fotos, porém voavam rápido demais, ou ao menos era a facilidade de se tornar invisível pelo seu tamanho.

    No caminho de volta para o aeroporto, Midori dormiu durante todo o percurso. E quando, nas paradas da estrada, acordava, pensava nelas. Queria voar e ver outros lugares também, entretanto, sentia que algo estava prestes a impedí-la de cumprir essa fantasia. 

    Ao chegarem em casa, a menina borboleta começou a ficar sem ar. Os pais ligaram imediatamente para uma ambulância e ela foi intubada logo que chegou ao hospital. Os médicos pediram para que os pais esperassem na sala de espera. Apreensivos, fitaram-se, até um deles tomar coragem e dizer:

    – Você acha que foi a fumaça do acidente da planta nuclear?

    – Você ouviu o que o governo disse...

    – Mas você realmente acha que é uma coincidência?

    O pai olhou severamente para a esposa, encerrando o assunto.

    Horas depois, puderam visitá-la.

    – Que susto que nos deu, minha filha!

    – Eu estou bem, mamãe. 

    O pai a beijou na testa. 

    – Está cansada?

    – Um pouco, papai. 

    – O médico está lá na porta, vamos conversar com ele. Comporte-se aí, mocinha. – e deu outro beijo na testa.

    No corredor, o médico anunciou que a condição de Midori ainda estava inconclusiva e que teria que passar a noite no hospital. Disse que os pais poderiam descansar em casa e voltar na manhã seguinte. 

    Ao abrirem a porta do quarto onde Midori estava, não a encontraram mais. Na cama, pousava apenas uma borboleta amarela, de um centímetro.


Autora: Fernanda Irada

Santos, SP


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