quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

O BORDADO PELO AVESSO

Continuando as publicações de textos de autoras e autores diversos, mostramos hoje um conto escrito por um autor do Ceará, que nos brinda com uma narrativa densa e poética...

Esperamos que todas e todos gostem!

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O BORDADO PELO AVESSO

    A viagem prossegue morna e o tempo se estira. A janela do ônibus reflete uma aflição desmedida. Paisagem estorricada, sequidão nos riachos, arremedos de bichos no esboçado dos pastos. O sol do quase meio-dia ignora a maquiagem, retocada de instante em instante. As poucas poltronas ocupadas seguem silenciosas.
    Quinze anos sem dar notícias. Uma ligação, a morte da mãe anunciada. Decidiu digerir rancores e reencontrar o sítio materno. 
    Pela enésima vez, apruma-se na poltrona, revolve os cabelos, recruza as pernas. As horas riscam o azulado do horizonte. 
    O trajeto remonta a figura do velho pai, olhos ressequidos, sobrancelhas grosseiras. Relembra o dia em que parou a lida e improvisou penteado numa espiga de milho. Apanhou para o resto da vida. 
    O pai definhou de desgosto, após flagrar os primos na cacimba. Pouco adiantou bater até arrancar sangue. Se é de se soltar, não há quem segure. O velho prostrou-se e morreu tempos depois. 
    Ainda jovem, decidiu sair de casa. Tinha sede de mundo. A mãe, D. Felícia, assentiu na escolha, com o olhar perdido no terreiro, arremessando milho às galinhas. Ela sobrevivia do marido. Durante o dia, era a serviçal aferrada aos caprichos do patrão. À noite, ele se esfregava, fétido dos bichos. Emprenhou-se algumas vezes, mas as crias não vingavam. Cinco deixaram de vir ao mundo. Três chegaram cedo demais e viraram anjos. Foi quando o velho arrumou uma criança para ela criar.
    O estirão do itinerário desvela algo como um remorso. Tempo demais sem dar notícias à mãe. Não importa mais.
    Saiu das brenhas dos Inhamuns para ganhar o Sudeste. Contava com os trapos do corpo e alguma convicção. Em postos de gasolina, acudiu homens de toda espécie para garantir trocado, até chegar a São Paulo, onde se ajeitou como manicure. A vaidade era a virtude em que se amparava. Cabelos longos, unhas vermelho-sangue, olhos cor de fumo, corpo eloquente, tudo impunha ares de solenidade. Aprendeu a transitar naquele mundo, entre grosserias e intimidações.   
    - Quem vai descer na Passagem da Onça?
    A exuberância desorienta os passos. O salto agulha acentua a insegurança dos movimentos, escoltados pelo olhar inquiridor dos passantes. Não existe bagagem, apenas uma bolsa tiracolo. Sem segurança do caminho, solicita um mototaxista.
    - O senhor sabe onde fica o sítio de D. Felícia? Morreu recentemente.
    - Sei demais.
    Repuxa o vestido, apruma-se na moto. Aos poucos, reconhece a trilha. O açude Poço Verde, a cancela da fazenda dos Mota, a cacimba, agora desativada.
    - D. Felícia era mulher tão boa, decente... A senhora sabe, né?
    - Com certeza.
    No sítio, as coisas são estranhamente familiares. Piso de cimento queimado, forno de tijolos, quadros em feitio oval. À janela, o vazio que a mãe tanto gostava de alimentar. 
    Diante da penteadeira, frascos vazios de perfume, gavetões emperrados, o terço de D. Felícia.  Ela se apegava ao tercinho toda vez que o marido inventava de brutalizar quem estivesse pela frente. 
    Depois de vasculhar outras lembranças, retoca a maquiagem pela última vez, apanha o terço e sai.
    O vestido atrapalha e o salto afunda na piçarra. Deixa os sapatos para trás. Àquela hora da tarde, poucos se atrevem ao sol.
    - Para que lado fica o cemitério, seu moço?
    - Ali na frente, passando o Matadouro.
    Aperta o passo. O calor é insuportável. Na entrada do cemitério, um senhor enfiado no chapéu aponta o lugar e desaparece. Felícia Neves de Araújo.
    Não há mais o que fazer. Com força, aperta o terço da mãe contra o peito, fecha os olhos e move suavemente os lábios, como sussurrasse. 
    Estica o pescoço. Ninguém no cemitério. Apenas duas galinhas ciscando por ali.  Pouco a pouco, vai se desfazendo. Tira as unhas postiças, os cílios. Enfia a mão no vestido e arrebata o enchimento do sutiã. Puxa a peruca e joga sobre o crucifixo que demarca o jazigo. Da bolsa tiracolo, saca um revólver. O cano na boca e o disparo. As galinhas alvoroçam, mas logo voltam a bicar a terra, porque, para elas, nada aconteceu.

Autor: Sinval Farias
Fortaleza, CE

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