Em virtude de algumas declarações horrendas do atual Ministro da Educação, resolvi publicar aqui um texto que escrevi há 5 anos... Apesar de parecer, não foi um texto profético, somente uma reflexão de quem esteve por muitos anos nas escolas... Esse texto faz parte do livro PEQUENA LOJA DE ARTIGOS EM GERAL, disponível na nossa Estante A Liter Ação...
Espero que todas e todos gostem!
Façam comentários e vamos aprofundar um debate, que parece muito importante!
MEMORIAL
DE PEQUENOS GRANDES PARADOXOS REDUNDANTES
ou
REFLEXÕES
ACERCA DE LINHAS E CANÇÕES
A letra fria do papel mostra o calor
do abraço educacional em todas as pessoas, independentemente de suas
características individuais. Isso torna a discordância muito difícil, uma vez
que a lógica politicamente correta dos processos educacionais é, justamente, a do direito de todos os estudantes de estarem
juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo de discriminação.
Com um corpo formado de decretos,
declarações e documentos, a Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva é um grande boneco que se move com a
dificuldade de seu gigantismo. Conceitualmente é uma política que avançou muito
no decorrer do tempo e apresenta diretrizes significativas. No entanto, esse
boneco apresenta duas deficiências, que acabam por excluí-lo da realidade...
Ironia paradoxal daquilo que sucumbe à dureza da realidade...
Uma das deficiências está
relacionada ao tempo. O tempo das dinâmicas sociais, infelizmente, não
acompanha o tempo do boneco, tempo esse quase lúdico. E esse boneco não impõe, sequer
propõe, um tempo efetivo para que suas ideias se transformem em ações
espalhadas pelos campos, semeando transformações... É compreensível que o tempo
das realidades seja respeitado... Entretanto, esse tempo não está imune a
valores ultrapassados que ainda turvam de preconceitos e dogmas as
possibilidades cristalinas que essa política busca oferecer.
Os processos de produção do conhecimento (grifo altamente questionador), que têm
nas instituições de ensino, em todos os níveis, sua representação máxima para o
imaginário social, ainda estão revestidos de uma aura de sacralização que traz
consigo idiossincrasias interessantes. Muitas pessoas ainda enxergam a escola
(não vamos esquecer que estamos falando de todos os níveis de ensino) como uma
ilha de salvação das intempéries da vida.
Por outro lado, o quase senso comum
de que a escola deve assumir outras funções, que vão desde suprir as carências
alimentares e emotivas dos educandos até a de ser um espaço de militância, no
sentido mais raso do termo, acaba por transformar a instituição educacional
numa espécie de microcosmo controlado do mundo, um protótipo experimental da
vida, delimitado pelos seus muros e controlado por suas figuras detentoras do
saber. Com isso, a escola passa a ser um simulacro do mundo que não se realiza
plenamente.
Esse quase limbo em que as
instituições escolares foram colocadas impede que o tempo das políticas
idealizadas coadune-se com o tempo de suas próprias efetivações, criando lapsos
que, ao serem alimentados por valores sedimentados nos conservadorismos
consagrados, muitas vezes, pelos próprios representantes dessas políticas e,
quando não, por outros veículos de perpetuação discriminatória, que ainda
normatizam aquilo que é padrão, aceitando com uma benevolência hipócrita o que
esses mesmos veículos chamam de desvio, transformam-se em verdadeiros buracos
negros, engolindo toda a matéria inovadora que possa surgir, vestindo a máscara
da solidariedade que, ao pregar o respeito às diferenças, quer na verdade
homogeneizar a tudo e a todos, engolindo a matéria bruta das individualidades.
A outra deficiência está relacionada
à posição daquilo que se chama Educação Especial. A geografia dos termos em um
espaço completamente difuso de conceitos. A transversalidade da educação
especial e o atendimento educacional especializado podem soar como música que
suaviza as culpas existentes em uma sociedade normatizada que insiste em não se
abrir. No entanto, os acordes dessa música são insuficientes para todas as
melodias existentes, promovendo a emissão de um coro uníssono de metas
estabelecidas a priori, sem que a normatização seja revista, levando a uma
quase naturalização dessa canção única.
A educação especial atravessando o
ensino regular, apesar de realmente ser um avanço em relação ao paralelismo
antes existente, onde essas modalidades sequer se encontravam, ainda carrega o
paradigma da normalidade. A ideia de pessoas com necessidades especiais ainda
se ancora no cais de um padrão de pessoa, colocado como ideal que, na verdade,
serve à sustentação de um sistema excludente, o que representa mais um dos
inúmeros paradoxos que visitam os processos sociais como um todo e os processos
educacionais especificamente. Esse padrão de pessoa atende exclusivamente a uma
necessidade de produção de capital, real e simbólico, fazendo girar uma roda
ininterrupta que só serve para esmagar aqueles que a fazem girar...
Não vamos enveredar agora pela seara
de uma reflexão político-econômica que, apesar de extremamente necessária e
talvez até primordial para compreender os parâmetros que guiam as políticas em
todos os seus âmbitos, podem deslocar o foco dessas parcas reflexões...
Voltemos, então, à geografia espacial das políticas educacionais...
O paralelismo era excludente, mas a
transversalidade avançou, quando muito, para o campo da integração. Uma
integração que tem muita dificuldade em reconhecer que não existe uma pessoa,
ou um grupo de pessoas, com necessidades especiais, pois essas necessidades
especiais têm como parâmetro as normas uniformizantes da sociedade. Uma
integração que desacelera o ritmo das transformações ao propor metas de uma
equidade fantasiosa, que preconiza um alcance comum a todas as pessoas, alcance
esse objetivado em premissas reguladoras.
O ensino regular tem que ser
especial, no sentido de atender especialmente cada um dos indivíduos que nele
ingressam, com suas características peculiares e únicas. Cada pessoa tem seu
tempo, seu espaço, seus anseios e suas angústias. E tudo isso deve ser contemplado
plenamente nos processos educacionais. A regularidade do tempo-espaço da escola
deve se abrir de tal forma que consiga abarcar toda a riquíssima gama de
tonalidades pessoais existentes.
A educação especial deve ter a
regularidade do todo dia... Os profissionais que atuam nos espaços educacionais
devem estar preparados para trabalhar especialmente com cada indivíduo que
encontram, para que os complementos e suplementos advindos de uma necessidade
artificialmente criada sejam incorporados ao cotidiano dos processos de
aprendizagem e transformem-se em instrumentos regulares de atendimento às mais
diversas pessoalidades existentes. A educação especial deve se abrir de tal
forma a abarcar todo o espaço-tempo do cotidiano escolar, transformando a
educação como um todo em algo especial.
Dois campos que se abrem
incessantemente, até que se confundam de tal maneira a não existirem mais como
campos separados, mas sim como um único território onde a desarmonia das
diferentes linhas não signifique hierarquização de valores e onde cada linha,
mesmo na desarmonia, possa existir plenamente junto a todas as outras, também
plenas.
A poesia da pequena canção reflexiva
acima deve ser traduzida em ação concreta. O abstrato corre o risco de
distanciar-se do mundano, sacralizando ideais. E não é isso que essa pequena canção
quer cantar. Na prática, não devemos incluir o EPAEE nas nossas aulas, mas sim
abrir as nossas aulas para que elas se tornem espaços onde todos são EPAEE,
porque efetivamente o são. A aula deve ser um lugar de encontro das
necessidades de cada indivíduo. E isso é possível, na medida em que o próprio
professor não se deixa levar por metas traçadas pelos padrões conservadores.
Uma aula em que as ideias de cada um dos educandos possam ser absorvidas e
aproveitadas, bem como os modos de expressão dessas ideais. Isso exige do
professor disponibilidade para o sempre novo. Isso exige a não cristalização do
conhecimento, desde os processos de descoberta existentes na educação infantil
até os processos de pesquisa do ensino superior.
No caso do ensino superior existe
ainda o agravante dos sistemas de seleção para ingresso. Já passou da hora de
as instituições de ensino superior, bem como os gestores públicos responsáveis
pela normatização dessas instituições, abolirem os atuais sistemas de seleção
para ingresso, totalmente excludentes e absurdos em todos os sentidos, trazendo
uma homogeneidade elitista ao universo da universidade (redundância
tragicômica).
Para que os professores das
universidades possam se abrir a todos os diversos tipos de pessoas e, com isso,
ampliar o campo de atuação dos diferentes cursos universitários, é preciso
antes de tudo que esses diversos tipos de pessoas estejam presentes nas
universidades, o que efetivamente não acontece. Além disso, claramente a
universidade tem que parar com a insistente meta de atender à demanda de um
mercado gerador de capital falido... Mais uma vez a seara político-econômica se
faz necessária...
Conteúdos, metodologias, processos avaliativos, estruturas arquitetônicas e simbólicas. Tudo isso deve mudar... Ou melhor, tudo isso deve explodir para que haja uma real abertura onde todos possam coabitar e onde as ideias de igualdade e diferença possam realmente ser indissociáveis.
Autor: Roman Lopes
Guarulhos - SP
Escrito em 2016
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