terça-feira, 4 de maio de 2021

O AMOR DA LUMBI

Mais uma vez temos a alegria de publicar, no nosso blog, um texto de um autor que conhecemos durante a nossa trajetória para a construção de um espaço artístico e literário cada vez mais diverso e plural. Trata-se de um conto chamado O AMOR DA LUMBI, que veio da capital moçambicana Maputo, através da pena misteriosa do nosso amigo Benjamin Pedro João...

Queremos agradecer a ele por nos dar essa honra e por contribuir para o nosso projeto, fazendo-nos conhecer a riqueza da literatura do seu país!

Esperamos que todas e todos gostem


O AMOR DA LUMBI

    David nunca tinha visto, na sua vida, mulher tão maravilhosa como aquela; tinha uma pele clara, era de altura mediana e bela. O rosto era angelical como a maciez de uma maçã. De traços suaves, sorriso de Mona Lisa, que Vinci pintou no seu imortal quadro. No peito destacavam-se os seios, que eram similares a duas peras maduras; um pouco abaixo, curvas suaves escondidas pelo vestido de seda que o vento, vindo do pequeno bosque, situado perto da cidade, acariciava. Ela fitava as coisas à sua volta, com curiosidade de criança, numa brandura leve, como as visse pela primeira vez.

    – Estás apreciando o ambiente da rua? – Perguntou-lhe uma voz. Era David que, não se contentando com o quadro que apreciara demoradamente, se aproximara, pouco a pouco, dela. Ele devia ter um pouco mais de vinte e cinco anos de idade. Sustentava, entre dois dedos, um cigarro aceso, numa atitude de pose de conquistador profissional. A Lumbi, que estava distraída, ao ouvir aquela voz muito próxima dela, voltou-se. Não assustada, porém surpreendida, sorriu engraçada, fazendo covas nas bochechas. Abanou a cabeça onde corriam belas tranças de adolescente, enquanto a boca se abria num sorriso em flor.

    - Assustou-se, menina? – Perguntou-lhe David mais atrevido.

    - Não, propriamente, não me assustei, mas, quando ouvi o senhor muito perto de mim…

    David estendeu a mão. - Trate-me por David, por favor. – Disse isso com ardor enquanto, com a outra mão, batia no peito.

    Ela sorriu outra vez. Nesse momento, uma senhora descomunalmente feia, porque tinha bigodes, embora senhora. Ela atrelava um cão. A Lumbi fitou aquela mulher e achou aquele um interessante espetáculo.

    - Penso que não estou a incomodá-la. – Disse David ao seu lado.

    - Incomodar-me, por quê? Acho o senhor até muito simpático – esclareceu ela.

    Simpático? Se ela soubesse a maldade que ele escondia no coração! Mas a voz dela, com encanto de um rouxinol, fascinou-o deveras.

    - Chamo-me Lumbi – disse ela. Depois de dizer isso ficou a olhar, com aquela graça singela do seu rosto, que, para o descrever, direi apenas que ela parecia uma fada que olhasse para a natureza das coisas sem que se comprometesse com elas.

    David estava como hipnotizado. Olhava para aquele sorriso que brotava dos lábios vermelhos dela como fosse agente da lua. – Como és linda, Lumbi! – Acabou dizendo.

    Ela, ao ouvir isso, parou de sorrir: – Não diga isso, não desperte sentimentos de amor, em mim, por favor.

    – Por que não? És linda, Lumbi, acredite, tão perfeita!

    – Perfeita, não senhor, porque eu sou insuficientemente humana, por isso, se escusa de…

    David, quando ouviu isso, afoitou mais o seu coração. A atitude dela desafiava a sua natureza masculina. – És tão bela, acredita. Teu corpo me parece angelical, algo surpreendente… não sei como dizer… eu queria tocar-te um pouco para ver se de verdade…

    – Apetece-te tocar-me com a mão… não pode ser, só podes apreciar-me. - Tão difícil aceitar tal coisa, eu não sou suficientemente humana, desculpe-me…mas como insistes….

    - Quero-te ver humana…

***

     O sol declinava. Ela, agora, encontrava-se na mesma rua. David, que veio a correr, ficou especado no meio da estrada. Pois, ao fitá-la notou uma mudança abrupta na fisionomia dela. Sua pele se encarquilhava à luz do dia. Os cabelos tesos soltavam-se do crânio, e deixavam-na como uma máscara; aquela mulher não era mais a bela Lumbi, que ele tinha visto há pouco tempo. Depois, o cabelo dela caía, um por um, indo com o vento. Sua face se encrespara de tal forma que já parecia alguma máscara terrosa e lúgubre, feita por um mau pintor satânico. Aquela beleza, que David vira em plenitude, agora não passava de algo sórdido, sórdido!

    – Mas, Lumbi, o que está a acontecer contigo? – Lamentava David sem perceber a lei dos deuses. A lei dos deuses é fria e irrevogável!

    Num silêncio grave, Lumbi começou a despetalar-se diante dos seus olhos.

    – Lumbi, onde tu moras, como posso contactar os teus pais? – Perguntou-lhe ele, sem atrever-se a aproximar-se bastante dela.

    Era tarde demais. No ar, numa dança macabra, abutres vinham em voo rasante… David, diante daquele cenário, sentia-se absolutamente fora de si. O mais interessante é que ninguém mais estava a ver aquilo além dele. Mas não fazia sentido que uma mulher que ele amara há pouco se tornasse, de repente, aquela escumalha! Pensava. O que significava aquilo? Um castigo? Ele não saberia explicar; ele não, mas a Lumbi sim, porque conhecia a lei inexorável dos deuses. Quando ele olhou novamente para ela, notou que dos olhos dela nasceram duas órbitas vazias. Inúmeros abutres com asas descomunais de vampiros, voando com bicos ríspidos, empoleiravam-se aos ombros dela e começavam a debicar voluptuosos os seus seios, e as carnes formavam, pouco a pouco, um lago de excrementos, pois vertiam sangue dos seus poros, que caía no alcatrão, formando naquele espaço da rua, um mar de excrementos de coisas horríveis, do corpo que começou a desfazer-se.

    E, incrivelmente, o vento que soprava com mais força, agora começou a limpar aquela mancha que se havia empolgada na estrada. Numa fração de segundos, o chão ficou limpo, como nada tivesse acontecido ali. David olhou para aquilo estupefato!  


Autor: Benjamin Pedro João

Maputo - Moçambique

Escrito em 2004

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