No ano de 2018 eu tive a felicidade de assistir a um espetáculo de teatro chamado MATTEO PERDEU O EMPREGO, com os queridos amigos da Companhia Os Tios do Teatro, sob direção de André Abujamra. Como sempre acontece quando sou tomado pela força de um evento artístico, resolvi escrever uma análise do espetáculo... Sei que é pretensão da minha parte, mas fazer o quê!... rsrsrs
Resolvi publicar essa análise aqui não só como uma homenagem a esse trabalho tão precioso, mas também para matar um pouco a saudade de um tempo em que conseguíamos ir ao teatro... Tomara que esse tempo retorne logo!
Espero que todas e todos gostem!
EU
PERCO, ELE PERDE E TODOS NÓS GANHAMOS
Matteo Perdeu o Emprego… Num desfile tresloucado de personagens
múltiplas, em uma cidade que não sabemos se está fora ou dentro do palco,
perdemos a nossa vergonha na cara ao sermos convidados a rir de todas as graças
e desgraças que vemos em nossos dias… E também daquelas que não vemos ou
fingimos não ver… Rimos protegidos pelo abraço aveludado das poltronas e
perdemos todos os pudores da nossa hipócrita moralidade politicamente correta…
Matteo, sem emprego, nos encontra nos absurdos dos preconceitos desenterrados
com a facilidade de uma faca na manteiga e nos convida a participar de uma
festa onde as coisas engraçadas e as coisas sérias se transformam no avesso do
avesso do avesso de si mesmas, em reviravoltas incontáveis das nossas faltas de
senso… Numa inversão efusiva do nosso país da piada pronta, é o português que
tira sarro da nossa cara, fazendo-nos ainda rir das nossas próprias
mediocridades…
Mas Matteo, sem emprego, é mais do
que uma presa fácil de riso solto… É a paisagem fixada de uma
incomunicabilidade imemorial, cuja origem reside nos nossos desejos
interplanetários de conquista e cujas fissuras mais delineadas aparecem nos
Ionescos, nos Becketts e nos Arrabais de uma história contada somente pelos que
venceram a batalha injusta de uma civilidade imposta… É o reencontro com aquele
absurdo constrangedor que deixamos sempre ocultos sob os ares de cidadãos de
bem e sob as égides das famílias nucleares… Com a força de uma bomba atomizada,
esse absurdo atravessa os discursos rasos de um senso comum e explode em
personalidades multifacetadas, que nos jogam face a face com a porcaria
produzida pelas nossas próprias inconsistências...
Três poliatores (Armando Liguori Junior, Paulo de Moraes e Ricardo Sequeira), autodenominados Os Tios do Teatro, transformam-se
em três mil pessoas irriquietas, reveladas como uma cusparada em nossa
ambiguidade tranquilizada pela força do capital, ambiguidade essa que nos
coloca sentados sempre em frente a telas hipocondríacas, em estado de
prostração operária, prontos para a produtividade esquálida das frustrações que
nos plantam... Só que a tela de Matteo está ampliada a uma escala exponencial e
é habitada por esses três incansáveis trocadores de fantasias... Eles digerem
essas ambiguidades suboficializadas e vomitam diante de nós a nossa moralidade
esvaziada, produzindo o alimento primevo das almas em ebulição: uma leveza de
concreto amargo em asas de morcego...
Durante pouco mais de uma hora, em
que o tempo parece estar em viagem de férias, esses três bastardos gloriosos,
com ações profundamente fáceis na aparência, mas que tocam na intensidade dos
espectros mais graves da nossa existência, bailam como estrelas marinhas,
transformando a todos em convivas de um banquete onde são servidas baratas,
lixos e mortes... Uma sobremesa kafkiana de um primor irretocável nos faz ver que
os insetos zunem dentro dos nossos ouvidos... E eles pisam nas nossas
consciências pasteurizadas e nos fazem circular pelas rotundas das nossas
incoerências...
O texto de Gonçalo M. Tavares
recebeu um tratamento imperial e foi transformado em um cancioneiro matizado de
vozes barítonas a embalar uma verdadeira sinfonia de suavidades grotescas,
típicas de um apocalipse da mais alta qualidade... A direção de André Abujamra
é uma mistura de sala de aula, fim de feira e brincadeira de esconde-esconde,
onde quadros recortados com uma tesoura de fé cega, uma trilha sonora de faca
amolada e intervenções em vídeo eclipses alucinógenos arrebatam a nossa
comodidade pequeno burguesa e a colocam em um paredão de formigamentos, que
retira as camadas protetoras e deixa expostas as fraturas das inconveniências
vividas...
Matteo perdeu o emprego, mas nos fez
encontrar o deleite do sorriso constrangido e da ironia afinada... É um desbunde
sarcástico de potência altissonante... Ele perde o emprego e nós perdemos a
ilusão de uma normalidade malfadada a um fundo de gaveta...
Autor: Roman Lopes
Guarulhos - SP
Escrito em setembro de 2018
Ótima resenha! Realmente, deixar qualquer um curioso para assistir a peça.
ResponderExcluirQuem sabe ela volte em algum momento!
ExcluirOooops... Corrigindo a frase:
ResponderExcluirÓtima resenha! Realmente, "deixa" qualquer um curioso para assistir a peça.