quinta-feira, 22 de abril de 2021

EU PERCO, ELE PERDE E TODOS NÓS GANHAMOS

No ano de 2018 eu tive a felicidade de assistir a um espetáculo de teatro chamado MATTEO PERDEU O EMPREGO, com os queridos amigos da Companhia Os Tios do Teatro, sob direção de André Abujamra. Como sempre acontece quando sou tomado pela força de um evento artístico, resolvi escrever uma análise do espetáculo... Sei que é pretensão da minha parte, mas fazer o quê!... rsrsrs

Resolvi publicar essa análise aqui não só como uma homenagem a esse trabalho tão precioso, mas também para matar um pouco a saudade de um tempo em que conseguíamos ir ao teatro... Tomara que esse tempo retorne logo!

Espero que todas e todos gostem!


EU PERCO, ELE PERDE E TODOS NÓS GANHAMOS

 

Matteo Perdeu o Emprego… Num desfile tresloucado de personagens múltiplas, em uma cidade que não sabemos se está fora ou dentro do palco, perdemos a nossa vergonha na cara ao sermos convidados a rir de todas as graças e desgraças que vemos em nossos dias… E também daquelas que não vemos ou fingimos não ver… Rimos protegidos pelo abraço aveludado das poltronas e perdemos todos os pudores da nossa hipócrita moralidade politicamente correta… Matteo, sem emprego, nos encontra nos absurdos dos preconceitos desenterrados com a facilidade de uma faca na manteiga e nos convida a participar de uma festa onde as coisas engraçadas e as coisas sérias se transformam no avesso do avesso do avesso de si mesmas, em reviravoltas incontáveis das nossas faltas de senso… Numa inversão efusiva do nosso país da piada pronta, é o português que tira sarro da nossa cara, fazendo-nos ainda rir das nossas próprias mediocridades…

            Mas Matteo, sem emprego, é mais do que uma presa fácil de riso solto… É a paisagem fixada de uma incomunicabilidade imemorial, cuja origem reside nos nossos desejos interplanetários de conquista e cujas fissuras mais delineadas aparecem nos Ionescos, nos Becketts e nos Arrabais de uma história contada somente pelos que venceram a batalha injusta de uma civilidade imposta… É o reencontro com aquele absurdo constrangedor que deixamos sempre ocultos sob os ares de cidadãos de bem e sob as égides das famílias nucleares… Com a força de uma bomba atomizada, esse absurdo atravessa os discursos rasos de um senso comum e explode em personalidades multifacetadas, que nos jogam face a face com a porcaria produzida pelas nossas próprias inconsistências...

            Três poliatores (Armando Liguori Junior, Paulo de Moraes e Ricardo Sequeira), autodenominados Os Tios do Teatro, transformam-se em três mil pessoas irriquietas, reveladas como uma cusparada em nossa ambiguidade tranquilizada pela força do capital, ambiguidade essa que nos coloca sentados sempre em frente a telas hipocondríacas, em estado de prostração operária, prontos para a produtividade esquálida das frustrações que nos plantam... Só que a tela de Matteo está ampliada a uma escala exponencial e é habitada por esses três incansáveis trocadores de fantasias... Eles digerem essas ambiguidades suboficializadas e vomitam diante de nós a nossa moralidade esvaziada, produzindo o alimento primevo das almas em ebulição: uma leveza de concreto amargo em asas de morcego...

            Durante pouco mais de uma hora, em que o tempo parece estar em viagem de férias, esses três bastardos gloriosos, com ações profundamente fáceis na aparência, mas que tocam na intensidade dos espectros mais graves da nossa existência, bailam como estrelas marinhas, transformando a todos em convivas de um banquete onde são servidas baratas, lixos e mortes... Uma sobremesa kafkiana de um primor irretocável nos faz ver que os insetos zunem dentro dos nossos ouvidos... E eles pisam nas nossas consciências pasteurizadas e nos fazem circular pelas rotundas das nossas incoerências...

            O texto de Gonçalo M. Tavares recebeu um tratamento imperial e foi transformado em um cancioneiro matizado de vozes barítonas a embalar uma verdadeira sinfonia de suavidades grotescas, típicas de um apocalipse da mais alta qualidade... A direção de André Abujamra é uma mistura de sala de aula, fim de feira e brincadeira de esconde-esconde, onde quadros recortados com uma tesoura de fé cega, uma trilha sonora de faca amolada e intervenções em vídeo eclipses alucinógenos arrebatam a nossa comodidade pequeno burguesa e a colocam em um paredão de formigamentos, que retira as camadas protetoras e deixa expostas as fraturas das inconveniências vividas...

            Matteo perdeu o emprego, mas nos fez encontrar o deleite do sorriso constrangido e da ironia afinada... É um desbunde sarcástico de potência altissonante... Ele perde o emprego e nós perdemos a ilusão de uma normalidade malfadada a um fundo de gaveta...


Autor: Roman Lopes

Guarulhos - SP

Escrito em setembro de 2018

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3 comentários:

  1. Ótima resenha! Realmente, deixar qualquer um curioso para assistir a peça.

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  2. Oooops... Corrigindo a frase:
    Ótima resenha! Realmente, "deixa" qualquer um curioso para assistir a peça.

    ResponderExcluir

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