quinta-feira, 30 de julho de 2020

O ANTI-HAMLET OU A UNIVERSIDADE DOS VIVOS

O texto a seguir foi escrito logo após a realização do I Colóquio Internacional "O Afro-Contemporâneo nas Artes Cênicas - Perspectivas Teóricas, Poéticas e Pedagógicas", que eu ajudei a organizar no Instituto de Artes da Unesp, em 2015. Foi a minha maneira de expressar o que senti nos dias de organização e realização do colóquio... Espero que todas e todos possam vislumbrar o que significou para mim essa experiência.


O ANTI-HAMLET OU A UNIVERSIDADE DOS VIVOS

Vamos enrubescer Heiner Müller


O estrangeiro natural, com uma naturalidade absurda, de arrancar aplausos de Beckett e sorrisos de Ionesco, indicou o caminho... E eu, andarilho errante, adentrei no mágico terreiro das brincadeiras rituais, conhecendo várias figuras: Mariannas, Julianas e todos os manas que uma boa vadiagem carrega em sua essência... Um misto de descoberta e reencontro... Apreensão e ansiedade...

Sem saber o que fazer, fui introduzido nos mistérios da busca pelo conforto... E levado pela onda caótica da cidade em ebulição, fui à procura do terreno firme onde pudessem aterrissar as naves que trariam os convidados da festa... No passeio por ruas, avenidas e praças, tão conhecidas mas tão novas, penetrei o coração pulsante da cidade e mergulhei nas entranhas de seus pontos de descanso, fazendo um inventário de possibilidades de sonhos...

Daí em diante, uma avalanche de ações foi tomando conta do ritmo já cadenciado do meu cotidiano de andarilho, fazendo-me dançar uma canção até então desconhecida... Um tsunami de nomes, números, valores e tarefas... A minha cabeça já estava pelas tabelas (desculpe o trocadilho, Chico!) ...

Às vezes dançando sozinho, às vezes compartilhando o círculo fantástico do terreiro, fui seduzido pela música pesada do escoamento do tempo e me entreguei de corpo e alma à conversão das línguas, na tentativa lúdica de traduzir ecos contemporâneos de um passado tão presente... Seria um prelúdio do que estava porvir (junto mesmo)...

Chegou o dia e o edifício branco e reto foi invadido por cores e tecidos esvoaçantes... Um baile de asas de seda e turbantes miraculosos... Amarelos, vermelhos, verdes, azuis... E pretos... Muitos pretos... O oceano branco ganhou coloração enegrecida e diminuiu de tamanho, trazendo a África para o terreno ao lado e para dentro de todos nós...

Com o olhar atento de quem quer captar tudo, esse andarilho fez o que mais sabia fazer... Andou... Por palcos, corredores, salões desertos e repletos... Trabalhou como fonte de desejos e cantou cânticos de ordenação... Vigiou, cuidadoso, a trincheira e atirou-se no campo de batalha...

Foram três dias de puro transe extático, fazendo-me cair no colo da morte abençoada, que me arrancou da vida massacrante da racionalização acadêmica... E, ao final do terceiro dia, eu ressuscitei... Vendo aquele mar negro em um continente tão improvável, eu ganhei nova vida, originária do sopro profano das danças dos que já se foram e regada pelas lágrimas dos meus, ainda bem, diferentes...

Restou, ao final dessa jornada, a esse solitário andarilho, cobrir-se de farinha, gritar a plenos pulmões e dançar em torno da fogueira, para fartar-se de uma colheita generosa, doada pela dor e pela alegria de quem tem realmente algo de fundamental a compartilhar com o mundo...


Autor: Roman Lopes
Guarulhos - SP
Escrito em 2015
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2 comentários:

  1. Talvez fosse uma cena comum, aos olhos de outras pessoas... mas um "olhar poético" muda tudo...

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    1. Eu diria que, mais do que um olhar poético, foi um olhar extático!
      Obrigado pelas palavras!

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