Para inaugurar o nosso espaço de narrativas, um texto que escrevi há algum tempo atrás, mas que era inédito! Espero que todas e todos vocês gostem e sintam entusiasmo em compartilharem as suas narrativas!
ODE À SAUDADE QUE RETORNA
OU
COMO DESAPRENDER A FALAR
Fui
menino travesso brincando nos parcos pontos verderidos
que insistiam em perfurar a camada cinzenta das florestas emparedadas da minha
infância; florestas estas que foram pintadas de tons mais sombrios pelo pincel
entediante da vida adulta, que apenas toca de leve as tintas, preocupado que
está com asseio de sua aparência...
Na
minha infância fui um poliglota... Conversava com nuvens e falava a linguagem
dos orvalhos. Como o arquiteto de Arrabal eu contava histórias para as
formigas, perdidas que estavam nos caminhos cimentados das calçadas, antes que
elas voltassem para suas casas, ocultas pelos concretos ensurdecedores...
A
língua das pessoas, eu aprendi cedo e falei pouco, apenas o suficiente para
mostrar que estava presente no mundo mudo das ações cotidianas solitárias. Eu
sempre preferi o idioma da fantasia, com o qual criava monstros besourentos voando pelos céus de uma
minúscula cidade de folhas de árvores, pedras no meio do caminho e palitos de
fósforo...
Adorava
conversar também com as bonecas e os bonecos que se amontoavam nas prateleiras
das minhas casas de devaneios. Eram longos colóquios, onde debatíamos o valor
flutuante dos estafetas e as maneiras de nos protegermos das monocromias insistentes.
Quando havia discordância em algum ponto de ônibus espacial, a reunião virava
uma guerra de bolas de sorvete e chumaços de algodão...
O tempo da meninice passou assim, entre a
língua libertária da família-mãe, que orientava sem imposições cegas nem
autoridades punitivas; a palavra seca do espaço rotineiro da escola-pátria, que
mais reproduzia o já dito pelas bocas consagradas do ilusório sucesso do que
ensinava novas canções; e a maravilhosa gramática da escrita imaginativa, que
criava jardins suspensos por fios de teias de aranha e muralhas de argila e
areia, para conter os rios caudalosos das sarjetas pós-pluviais...
Quando
passei a habitar o entre mundo límbico da não identidade adolescente, algumas
línguas foram guardadas nas gavetas fundas do porão-memória e outras começaram
a surgir. Idiomas de tribos outras, espelhos da minha própria tentativa de
arrumar um lugar ao sol...
Eram
os idiomas idílicos das paixões improváveis, que apareciam causando um estrago
de tornado e logo desapareciam, deixando o falso vazio poético do próximo amor
vindouro, mesmo antes que ele sequer pudesse reclamar sua existência. Eram
idiomas de pisca-pisca, cujas palavras eram engolidas e cuspidas à velocidade
do infinito...
Eram,
no entanto, também, os idiomas de uma branquitude escrita por uma história que
eu ainda desconhecia; história essa que queimou com ferro quente a pele negra
daqueles que conviviam comigo, mas viviam uma vida alheia aos meus privilégios.
Eram os idiomas de um machismo enraizado nas entranhas dos jovens que disputam
o lugar mais alto do pódio das vaidades vendidas em grandes magazines
publicitários. Mesmo vivendo em uma casa onde as mulheres estavam em destaque e
o racismo estava totalmente ausente, o mundo me ensinou esses idiomas, com suas
misoginias futebolísticas, seus discursos criminosos fantasiados de piadas de
mau gosto e seus monólogos masturbatórios de revistas com mulheres
objetificadas...
Paradoxalmente,
foi nessa época que eu aprendi a linguagem da tolerância, ensinada pelo irmão
tardio e que, com sua morfologia downesca,
acabou mostrando a riqueza de uma pluralidade ignorada pelas instituições
estruturantes de uma sociedade que tranca, a sete chaves, nos cofres dos
discursos igualitários higienistas, a beleza de toda e qualquer forma diferente
de ser. Essa linguagem, que veio como uma dor desconhecida, trouxe uma música
de sonhos, com suas melodias de brisas matinais, seus bailes de asas de
borboletas e suas luzes de bundas de vagalumes...
Ainda
nessa época, como uma espécie de preparação para transpor o limbo e adentrar o
território monocórdico da vida adulta, aprendi a linguagem do trabalho. O
idioma do capital veio forte, com suas frases feitas de ideias pasteurizadas e seus
quadros de sociedades ensandecidas pelo sangue do outro, seja aquele outro que
está ao seu lado, seja o outro retratado nos noticiários de todas as horas. É o
idioma que cala o ócio e faz gritar as necessidades fabricadas pelo excedente a
ser vendido...
Foi
nessa época, também, que comecei a falar a língua babelística da arte. Conversar com a folha em branco, usando a
linguagem das cores e da poesia; entrar no território corporificado de vários
seres e falar palavras impensáveis, desde os discursos dos reis shakespearianos
até as danças do oriente distante, passando pelas melodias das flautas doces e
pelas máscaras, pintadas ou não, dos palhaços e xamãs de outras dimensões
ontológicas...
A
vida adulta veio com toda a sua enxurrada idiomática, mas dona de um discurso
único, onde o aprendizado e o domínio das normas padrão se tornou uma
necessidade de sobrevivência...
A
língua do matrimônio, com suas promessas e desejos, que deixou importantes
marcas, foi colocada em seu lugar de fato e de direito, transformando-se em uma
conversa de verdadeiros amigos de longa data, ainda dividindo as agruras da
vida, sem, no entanto, compartilharem os leitos das imposições sociais...
A
língua da paternidade que, com seus medos e seus traumas dormentes nas fossas
abissais do inconsciente, explodiu sua semântica de maravilha, escrevendo histórias
de uma cumplicidade plena e da profundidade senso comum de um amor
incondicional...
A
língua do capital continuou sua trajetória opressiva, trazendo o contato com
diversos universos – paradoxo assustador da modernidade – em que a busca pelas
realizações vendidas torna-se o carro chefe das relações interpessoais e
administrativas. Com isso, aprendemos a cordialidade hipócrita dos cumprimentos
rascunhados, que escondem por baixo dos sorrisos dentifrícios, a vontade de
pular na jugular e sugar a seiva plasmática, numa antropofagia ao contrário,
onde ao invés de absorvermos a força do inimigo, esvaziamo-nos da nossa própria
força existencial...
Continuando a folhear o dicionário das artes,
aprendi a língua da mesmice, dos conflitos egóicos e das vaidades absurdas. A
suavidade poética do retrato do artista quando jovem – paráfrase roubada de
Joyce – ganhou os contornos duros da constatação de que as ilusões heroicas da
comunhão sonhada não passam de justificativas para o corporativismo elitista dos
pedestais de mármore em que habitam os falantes desse idioma de louros,
inclusive eu...
O
avanço do tempo, que crava suas garras na face, esculpindo sulcos expressivos
de saudades e deixa mais embranquecido o já branco da minha genética trouxe o
fantástico do desapego e a irresponsabilidade das escolhas livres...
Falo
todas as línguas impositivas que aprendi, o suficiente para conviver com as
pessoas, nessa selva de legalidades punitivas e ideologias que habitam os
botecos acadêmicos de uma paisagem desenhada até por mim mesmo – eu rio
daqueles que acreditam na minha sinceridade social...
Nos
momentos de silêncio, ou quando tenho a satisfação de experienciar pessoas
ainda não estragadas pelas engrenagens mecanizadoras desse jogo sujo que virou
o mundo, faço explodir a polifonia transgressora dos idiomas sem sentido...
Falo
a linguagem ateia da descrença generalizada e jogo na cara da contemporaneidade
altiva sua própria mesquinhez. Enrolo a língua em discursos politicamente
incorretos, para combater o oposto crivado de preconceitos que constroem suas
falas limpas pelas opressões que ainda dão as cartas nesse jogo, por mais que
eu tente reescrever constantemente o texto dos meus privilégios, impossíveis de
serem totalmente apagados...
Ao
mesmo tempo, revivo a marcha das formigas, o sussurro do orvalho e o grito dos
vulcões imaginários. Reescrevo os discursos imperiais das estrelas. Brinco com
os trocadilhos das poças d’água e com os trava-línguas das minhocas...
Tudo
isso para trilhar o caminho da fala mais profunda, que habita a plenitude presente
no sossego do silêncio...
Autor: Roman Lopes
Guarulhos - SP
Guarulhos - SP
Escrito em março de 2017
Senti minhas angústias expressas no texto em vários momentos: A opressão do capital e a contaminação das relações vazias e hipócritas (15º parágrafo). A descoberta da tolerância ao diferente... A valoração das artes... dentre outras coisas. Parabéns pelo texto profundo e poético.
ResponderExcluirMuito obrigado por suas palavras, Christine!
ExcluirÉ uma alegria imensurável quando as palavras que passaram por nós tocam as pessoas de forma profunda!