sábado, 9 de maio de 2020

ODE À SAUDADE QUE RETORNA

Para inaugurar o nosso espaço de narrativas, um texto que escrevi há algum tempo atrás, mas que era inédito! Espero que todas e todos vocês gostem e sintam entusiasmo em compartilharem as suas narrativas!



ODE À SAUDADE QUE RETORNA
OU
COMO DESAPRENDER A FALAR

Fui menino travesso brincando nos parcos pontos verderidos que insistiam em perfurar a camada cinzenta das florestas emparedadas da minha infância; florestas estas que foram pintadas de tons mais sombrios pelo pincel entediante da vida adulta, que apenas toca de leve as tintas, preocupado que está com asseio de sua aparência...
Na minha infância fui um poliglota... Conversava com nuvens e falava a linguagem dos orvalhos. Como o arquiteto de Arrabal eu contava histórias para as formigas, perdidas que estavam nos caminhos cimentados das calçadas, antes que elas voltassem para suas casas, ocultas pelos concretos ensurdecedores...
A língua das pessoas, eu aprendi cedo e falei pouco, apenas o suficiente para mostrar que estava presente no mundo mudo das ações cotidianas solitárias. Eu sempre preferi o idioma da fantasia, com o qual criava monstros besourentos voando pelos céus de uma minúscula cidade de folhas de árvores, pedras no meio do caminho e palitos de fósforo...
Adorava conversar também com as bonecas e os bonecos que se amontoavam nas prateleiras das minhas casas de devaneios. Eram longos colóquios, onde debatíamos o valor flutuante dos estafetas e as maneiras de nos protegermos das monocromias insistentes. Quando havia discordância em algum ponto de ônibus espacial, a reunião virava uma guerra de bolas de sorvete e chumaços de algodão...
 O tempo da meninice passou assim, entre a língua libertária da família-mãe, que orientava sem imposições cegas nem autoridades punitivas; a palavra seca do espaço rotineiro da escola-pátria, que mais reproduzia o já dito pelas bocas consagradas do ilusório sucesso do que ensinava novas canções; e a maravilhosa gramática da escrita imaginativa, que criava jardins suspensos por fios de teias de aranha e muralhas de argila e areia, para conter os rios caudalosos das sarjetas pós-pluviais...
Quando passei a habitar o entre mundo límbico da não identidade adolescente, algumas línguas foram guardadas nas gavetas fundas do porão-memória e outras começaram a surgir. Idiomas de tribos outras, espelhos da minha própria tentativa de arrumar um lugar ao sol...
Eram os idiomas idílicos das paixões improváveis, que apareciam causando um estrago de tornado e logo desapareciam, deixando o falso vazio poético do próximo amor vindouro, mesmo antes que ele sequer pudesse reclamar sua existência. Eram idiomas de pisca-pisca, cujas palavras eram engolidas e cuspidas à velocidade do infinito...
Eram, no entanto, também, os idiomas de uma branquitude escrita por uma história que eu ainda desconhecia; história essa que queimou com ferro quente a pele negra daqueles que conviviam comigo, mas viviam uma vida alheia aos meus privilégios. Eram os idiomas de um machismo enraizado nas entranhas dos jovens que disputam o lugar mais alto do pódio das vaidades vendidas em grandes magazines publicitários. Mesmo vivendo em uma casa onde as mulheres estavam em destaque e o racismo estava totalmente ausente, o mundo me ensinou esses idiomas, com suas misoginias futebolísticas, seus discursos criminosos fantasiados de piadas de mau gosto e seus monólogos masturbatórios de revistas com mulheres objetificadas...
Paradoxalmente, foi nessa época que eu aprendi a linguagem da tolerância, ensinada pelo irmão tardio e que, com sua morfologia downesca, acabou mostrando a riqueza de uma pluralidade ignorada pelas instituições estruturantes de uma sociedade que tranca, a sete chaves, nos cofres dos discursos igualitários higienistas, a beleza de toda e qualquer forma diferente de ser. Essa linguagem, que veio como uma dor desconhecida, trouxe uma música de sonhos, com suas melodias de brisas matinais, seus bailes de asas de borboletas e suas luzes de bundas de vagalumes...
Ainda nessa época, como uma espécie de preparação para transpor o limbo e adentrar o território monocórdico da vida adulta, aprendi a linguagem do trabalho. O idioma do capital veio forte, com suas frases feitas de ideias pasteurizadas e seus quadros de sociedades ensandecidas pelo sangue do outro, seja aquele outro que está ao seu lado, seja o outro retratado nos noticiários de todas as horas. É o idioma que cala o ócio e faz gritar as necessidades fabricadas pelo excedente a ser vendido...
Foi nessa época, também, que comecei a falar a língua babelística da arte. Conversar com a folha em branco, usando a linguagem das cores e da poesia; entrar no território corporificado de vários seres e falar palavras impensáveis, desde os discursos dos reis shakespearianos até as danças do oriente distante, passando pelas melodias das flautas doces e pelas máscaras, pintadas ou não, dos palhaços e xamãs de outras dimensões ontológicas...
A vida adulta veio com toda a sua enxurrada idiomática, mas dona de um discurso único, onde o aprendizado e o domínio das normas padrão se tornou uma necessidade de sobrevivência...
A língua do matrimônio, com suas promessas e desejos, que deixou importantes marcas, foi colocada em seu lugar de fato e de direito, transformando-se em uma conversa de verdadeiros amigos de longa data, ainda dividindo as agruras da vida, sem, no entanto, compartilharem os leitos das imposições sociais...
A língua da paternidade que, com seus medos e seus traumas dormentes nas fossas abissais do inconsciente, explodiu sua semântica de maravilha, escrevendo histórias de uma cumplicidade plena e da profundidade senso comum de um amor incondicional...
A língua do capital continuou sua trajetória opressiva, trazendo o contato com diversos universos – paradoxo assustador da modernidade – em que a busca pelas realizações vendidas torna-se o carro chefe das relações interpessoais e administrativas. Com isso, aprendemos a cordialidade hipócrita dos cumprimentos rascunhados, que escondem por baixo dos sorrisos dentifrícios, a vontade de pular na jugular e sugar a seiva plasmática, numa antropofagia ao contrário, onde ao invés de absorvermos a força do inimigo, esvaziamo-nos da nossa própria força existencial...
 Continuando a folhear o dicionário das artes, aprendi a língua da mesmice, dos conflitos egóicos e das vaidades absurdas. A suavidade poética do retrato do artista quando jovem – paráfrase roubada de Joyce – ganhou os contornos duros da constatação de que as ilusões heroicas da comunhão sonhada não passam de justificativas para o corporativismo elitista dos pedestais de mármore em que habitam os falantes desse idioma de louros, inclusive eu...
O avanço do tempo, que crava suas garras na face, esculpindo sulcos expressivos de saudades e deixa mais embranquecido o já branco da minha genética trouxe o fantástico do desapego e a irresponsabilidade das escolhas livres...
Falo todas as línguas impositivas que aprendi, o suficiente para conviver com as pessoas, nessa selva de legalidades punitivas e ideologias que habitam os botecos acadêmicos de uma paisagem desenhada até por mim mesmo – eu rio daqueles que acreditam na minha sinceridade social...
Nos momentos de silêncio, ou quando tenho a satisfação de experienciar pessoas ainda não estragadas pelas engrenagens mecanizadoras desse jogo sujo que virou o mundo, faço explodir a polifonia transgressora dos idiomas sem sentido...
Falo a linguagem ateia da descrença generalizada e jogo na cara da contemporaneidade altiva sua própria mesquinhez. Enrolo a língua em discursos politicamente incorretos, para combater o oposto crivado de preconceitos que constroem suas falas limpas pelas opressões que ainda dão as cartas nesse jogo, por mais que eu tente reescrever constantemente o texto dos meus privilégios, impossíveis de serem totalmente apagados...
Ao mesmo tempo, revivo a marcha das formigas, o sussurro do orvalho e o grito dos vulcões imaginários. Reescrevo os discursos imperiais das estrelas. Brinco com os trocadilhos das poças d’água e com os trava-línguas das minhocas...
Tudo isso para trilhar o caminho da fala mais profunda, que habita a plenitude presente no sossego do silêncio...


Autor: Roman Lopes
Guarulhos - SP
Escrito em março de 2017
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2 comentários:

  1. Senti minhas angústias expressas no texto em vários momentos: A opressão do capital e a contaminação das relações vazias e hipócritas (15º parágrafo). A descoberta da tolerância ao diferente... A valoração das artes... dentre outras coisas. Parabéns pelo texto profundo e poético.

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    Respostas
    1. Muito obrigado por suas palavras, Christine!
      É uma alegria imensurável quando as palavras que passaram por nós tocam as pessoas de forma profunda!

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